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Os Mistérios da Iniciação

OS MISTÉRIOS DA INICIAÇÃO

 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 353, fevereiro/2002

                   Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

Iniciação1.0.3

ilustr.: Bryan Leister

Mistério é palavra grega (mystérion) e significa “o que é secreto”. Provém do verbo myéin, usado quando devemos “calar a boca”. Daí que mýstes se refere a tudo aquilo que se fecha; é o “iniciado” que, calado, conhece e guarda. Mesma raiz têm os termos mystikós (a designar “o místico”, aquele que penetra nos segredos) e myesis (referente aos “ritos” mediante os quais a sabedoria é preservada).

Esclarecedora é a tradução latina: myéin = initiare; myesis = initiato; em português: iniciar e iniciação. Como diz o nome, iniciação é a senda de todo aquele que deseja retirar-se da vida profana para iniciar-se no saber sagrado. Os mistérios, antes de tudo, constituem um caminho de renascimento, regrado pelo secreto sentido da vida. Acha-se implícito aqui o tema da morte simbólica, principal etapa a ser vencida por todo candidato que se proponha a renascer na luz espiritual.

ilustr: Gasperi & Uggeri

ilustr: Gasperi & Uggeri

As cerimônias de iniciação compõem um fenômeno universal, comumente discutido por milologistas e antropólogos. Resgatamos sua ocorrência desde as mais priscas eras. Já na Pré-história há evidências indiscutíveis de crenças firmadas em outra vida além desta, como nos atestam as sepulturas do homem de Neanderthal, predecessor remoto de nossa espécie Homo sapiens, que datam de 200 mil anos. Nelas foram encontradas provisões, além de esqueletos de animais sacrificados, junto dos corpos enterrados em posição fetal e no sentido leste-oeste, a sugerir que a alma ou algo desse gênero tomasse a direção do Sol para renascer nalgum mundo desconhecido do pós-morte.

Com o evoluir da humanidade, os ritos iniciáticos tornaram-se prática constante, presentes nas mais díspares sociedades, primitivas ou não. Sob o aspecto sociológico, tais cerimônias visavam a dramatizar uma mudança significativa no status de cada iniciado, quer para conferir-lhe novas aptidões, transformando-o, por exemplo, num xamã, sacerdote, caçador etc, quer para transmitir-lhe solenemente algum saber secreto próprio da cultura, geralmente capaz de perpetuá-la, fossem as leis supremas da natureza ou a prática da agricultura.

Pitágoras; escultura em madeira, anônimo.

Pitágoras; escultura em madeira, anônimo.

Na Antigüidade clássica, as iniciações eram processos já bem desenvolvidos, patrocinados por diferentes cidades, não mais ocorrendo somente nos campos considerados sagrados, senão em templos erigidos e dedicados às suas divindades. Pitágoras (séc. VI a.C.), sabemos, antes de fundar em Crotona sua Escola de filosofia e esoterismo, migrou por 22 anos pelo Egito e Babilônia, submetendo-se a duras provas que fizeram dele um mestre.

Rito de Iniciação indígena norte-americano

Rito de Iniciação indígena norte-americano

Há exemplos inatos de iniciações entre os povos indígenas e tribos de toda espécie, que dramatizam as grandes experiências da vida por meio de ritos de maioridade, matrimônio, ritos funerários, ou ainda aqueles em que o iniciando recebe o espírito de entidades animais, capazes de lhe emprestar seus atributos; por exemplo, o caráter predador necessário a todo guerreiro.

No catolicismo encontramos o ritual de ordenação dos padres, assim como a conferência de outros sacramentos como o batismo, o crisma e o matrimônio, destinados a transformar profundamente o indivíduo sacramentado. Por vezes a iniciação pressupõe infligir marcas corporais indeléveis aos iniciandos, a firmar uma identidade comum entre os de mesmo clã. É o caso da circuncisão, rito comum entre os primitivos da Polinésia bem como entre os judeus, via de regra um pacto de fidelidade e obediência a Deus, também sinal de ingresso à vida, que simbolicamente repete o corte do cordão umbilical. Por Jeremias, 9, 25, ficamos sabendo que todas as nações de Israel, descendentes de Abraão, praticavam a circuncisão, recomendada no oitavo dia de nascimento, embora em Gênesis, 17, 24-25, encontremos que o patriarca foi circuncidado aos 99 anos, e Ismael, seu filho, ao atingir a puberdade, aos 13. Os egípcios adotavam o mesmo rito, e o procedimento era corrente entre os árabes, muito antes do advento do islamismo.

Ordenação de Padres - Basílica São Pedro - Vaticano

Ordenação de Padres – Basílica São Pedro – Vaticano

Em nossa sociedade, o costume de deixar careca os novos universitários, bem como o uso das becas na colação de grau, são resquícios ainda bem vivos de antigas tradições que até hoje raspam ou tonsuram os cabelos de seus monges iniciados, e que os obrigam a usar hábitos religiosos ou turbantes específicos, conforme a ordem ou a seita.

Nova Consciencia3.0.2

Enfim, toda iniciação se constitui num processo marcante de aprendizado, por meio do qual o iniciado, também chamado neófito ou aprendiz, pode vivenciar experiências transcendentais e alcançar melhor compreensão dos segredos da natureza e da própria condição humana.

O termo neófito requer explicação: é palavra grega que designa o que foi plantado há pouco (neo; novo + phitós; planta), aquilo que recentemente é fecundado na alma. Isto faz de todo neófito uma criança, um aprendiz essencialmente puro, que desconhece os percalços do caminho e, conscientemente ou não, está prestes a ser banhado pelas torrentes da existência, sofrendo assim uma experiência nova, dolorosa ou não, mas libertadora.

Observe-se o caminho de Cristo até o Calvário, onde sofre sua transformação final, que é a de experimentar a morte na cruz como passagem para a ressurreição. Não é à toa que a Igreja intitula este processo de mistério doloroso, a compor ao lado dos mistérios gozoso e glorioso a trilogia crística, como se fossem três graus necessários a cumprir a grande iniciação comandada por Deus Pai, que sacrifica seu próprio Filho em favor da iluminação da humanidade. Jesus conhece, assim, o último segredo, e passa a deter consigo parte do grande mistério, transcendendo o conceito morte/vida.

Tunel do Tempo(Pos-vida).0.4

Iniciações são processos paradoxais; se por um lado visam à ampliação da consciência por meio de vivências únicas que trazem o aprimoramento pessoal, por outro nos incitam a romper os limites dessa mesma consciência, fazendo nascer em cada neófito a vontade inata de saltar no desconhecido universo de si mesmo. A iniciação, em seu sentido pleno, faz morrer; o aprendiz deve entregar-se à morte, para que saia renascido pela saída/entrada que o leva a outra dimensão. A morte iniciática nos promove à rara condição de espectadores do mistério. Intuitivamente, todo iniciando sabe que para renascer deverá primeiro regressar ao seio da terra, e encontrar em suas entranhas o útero de onde poderá ser novamente parido. Simbolicamente deve, portanto, voltar ao estado predecessor da vida, à sua imensa escuridão particular. Só por meio do contato com a noite que trazemos em nossas próprias cavernas é que compreenderemos, por contraste, o paradoxo dessa inexorável condição, a de estarmos morrendo e renascendo a cada instante. Sem essa visão profunda, nenhum ser se completa, e passa pela vida em brancas nuvens, somente sob a luz do dia. É necessário, pois, que busquemos o mundo subterrâneo que nos suporta.

Deméter e Perséfone, Museu do Elêusis, 480 a.C.

Deméter e Perséfone, Museu do Elêusis, 480 a.C.

A mitologia universal, sedimento milenar das experiências vitais sofridas pela espécie humana, traz dentre seus mistérios radicais o binômio morte/vida e elege a Mãe-Terra, uma de suas principais deusas, para guardá-lo. Em nossos dias, a Deusa-Mãe da Ásia Menor, num latim correto, é chamada de Mater Magna; o nome provém do grego arcaico guê méter, a significar “Mãe-Terra”. Com as invasões dóricas ocorridas por volta de 1200 a.C., tornou-se comum por toda Grécia, incluindo sua extensão asiática, o uso do termo dórico equivalente a designá-la: dé méter. Na maior cidade-templo grega, Éfeso, na Ásia menor, a Grande-Mãe era a deusa silvestre Ártemis, com inúmeros seios, assimilada como Diana pelos romanos. Cumpre lembrar, curiosamente, foi o Concílio de Éfeso do ano 431 de nossa era que proclamou a Virgem Maria como mãe de Jesus e de todos os homens. Na Frígia, Deméter era Matar Kybeléia, ou Cibele, conforme ficou conhecida entre os romanos, e habitava as montanhas.

Deusa Kali

Deusa Kali

Historicamenteremonta-se o culto da Mãe-Terra à época anterior à escrita, seguramente até o neolítico, cerca de 4500 a.C.; e podemos observar sua ocorrência como deusa principal de fertilidade em todas as civilizações mais antigas. Ela é Gaia, Réia, ou Deméter entre os gregos; Ísis entre os egípcios, Íshtar entre assírios-babilônios; Astarte entre os fenícios, Pachamama para os incas, e assume o arquétipo terrível da deusa Kali, entre os hindus, ou a mãe canibal, deusa negra de aspecto hediondo, que nos mostra sua língua ensangüentada enquanto dança sobre os cadáveres, assumindo a personificação do tempo que a tudo devora. A propósito, não nos esqueçamos, durante 600 mil anos de experiência humana, as mães-ogras canibais já foram realidade presente em inúmeras culturas espalhadas pelo mundo. O fato concreto gerou diversas referências míticas. Todos conhecemos, por exemplo, o conto da gentil velhinha, na verdade uma bruxa malvada, que convida crianças a entrar em sua casinha de chocolate com o intuito de prendê-las e fazê-las engordar até que lhe sirvam como boa refeição. Mas como é possível que a Mãe Divina seja assim, em alguns casos, hedionda e mortal?

Ora, encontramos no simbolismo da mãe a mesma ambivalência da terra, que nos oferece todas as chances de vida da mesma forma que recolhe todos os cadáveres. Se nascer é sair do ventre materno, morrer é retornar à terra. Para melhor assimilarmos o conceito, façamos uma síntese do mito de Deméter e Perséfone, sua filha, deusas às quais foram consagrados os Mistérios de Elêusis, profundo drama iniciático a celebrar o ciclo da vida, da morte e do renascimento; a nos ensinar a brevidade da existência e a nos indicar um caminho secreto de espiritualidade.

Deméter, Perséfone e o jovem Triptolemo no Elêusis, a quem a Grade-mãe destina levat a agricultura aos homens

Deméter, Perséfone e o jovem Triptolemo no Elêusis, a quem a Grande-mãe destina levar a agricultura aos homens

Elêusis em grego significa “advento, vinda”, ou “encontro”.  Trata-se de uma região situada a 22 km de Atenas. Seu culto, repetido a cada cinco anos, data desde as origens da cidade, séc. XVI a.C., conforme revelaram recentes escavações. Com o pacto de união política entre Elêusis e Atenas, ocorrido no séc. VII a.C., os mistérios encontraram seu apogeu, até serem proibidos, após dois mil anos de prática, por decreto de Teodósio I, o Grande (séc. IV d.C.), que, convertido ao cristianismo, mandou destruir a picareta todos os templos pagãos do império romano.

A repetição desse rito atualizava e perpetuava o mito da Mãe-Terra. Perséfone, filha única de Deméter, saíra pelos campos num dia ensolarado a colher flores. Encantada com um narciso plantado maliciosamente por Zeus à beira de um precipício, ao abaixar-se para apanhar a flor, deu-se conta, apavorada, de que o chão se abria sob seus pés. Lançada no abismo, gritando enquanto caía, viu-se violentamente apanhada pelos braços de Hades, soberano dos mortos, habitante das entranhas da Terra, que levou consigo a jovem para servir-lhe de esposa em seu mundo.

Hades rapta Persefone -mármore de Lorenzo Bernini

Hades rapta Perséfone -mármore de Lorenzo Bernini

Deméter, em cuja alma ressoara magicamente o grito dado pela filha, sai a seu encalço. Por nove dias, com a cabeça enlutada por um véu negro, vaga por toda a Grécia à sua procura ou de quem tivesse notícias. Nem Hécate, a Lua, que tudo vigiava, sabia dizer onde estava Perséfone, embora confirmasse ter ouvido seu grito. Hélio, o Sol, única testemunha do fato, notando o desespero de Deméter, resolve contar-lhe o que sabia, e aponta-lhe o raptor e seu cúmplice.

Deméter mais ainda se desespera; impossível resgatá-la naquele mundo interdito. Irritada com Zeus e com Hades, recolhe-se entristecida em Elêusis, renuncia ao Olimpo e resolve deixar de gerar sementes até que lhe devolvam sua filha. Zeus agora é quem se preocupa. O fim das sementes é o fim da Terra e de toda a humanidade; por conseguinte, o fim dos deuses que dependem exclusivamente de nossos tributos para que continuem reinando. Antes que todos morram e tudo acabe, Zeus resolve mudar de lado na brincadeira de mal gosto engendrada, e envia Hermes, seu mensageiro, único autorizado a penetrar incólume no reino de seu irmão, Hades, para convencê-lo a devolver Perséfone. Mas já era meio tarde, a mocinha estava apaixonada! Havia tomado com gosto uma poção mágica de romã, preparada por Hades conforme receita de Zeus, e por nada desse mundo desejava voltar para os braços da mãe. Zeus se desespera ao ver o feitiço operando às avessas. A tétrade divina, por questão de sobrevivência, chega finalmente a um acordo: por sugestão de Hades, orientado que fora por Zeus, Perséfone resolve dizer à mãe que só regressaria se ela lhe permitisse viver ao lado de seu amado raptor pelo menos um quarto de cada ano, o que de pronto é aceito por Deméter. Para nossa sorte, o pacto e o casamento estão firmados até hoje, mas Deméter, de certa forma conformada, ainda se ressente a cada período que passa longe da sua filha, quando notamos sua tristeza e sentimos seu inverno.

Hades, Perséfone e o sumo da romã, baixo relevo, sec.V a.C.

Hades, Perséfone e o sumo da romã, baixo relevo, sec.V a.C.

Perséfone revê sua mãe a cada ano no Elêusis, daí ser este o local do “encontro, do advento”, quando renasce a primavera e Deméter se rejubila.

Os Mistérios diziam respeito a isso, ao milagre da vida. Deles qualquer cidadão sem crimes e que soubesse falar o grego fluentemente poderia tomar parte; isto porque certas passagens exigiam a repetição de ladainhas e nomes secretos que deviam ser pronunciados corretamente. Era uma festa democrática, permitindo que homens ou mulheres, livres ou escravos, fossem iniciados sem ter que, após os ritos, abandonar seus compromissos com a família ou a cidade. Dividiam-se em pequenos e grandes mistérios, sendo estes últimos alcançados somente por rara parcela dos iniciados.

Os pequenos mistérios eram ministrados aos postulantes, em Atenas, pelos mistagogos (do grego, mysta + gogós = “condutores dos iniciados”). Estes lhes ensinavam certas posturas e frases, cobravam-lhes o jejum em certas datas e davam-lhe missões como, por exemplo, a de banhar-se no mar com um porco, que se diz koyrós em grego, mesmo nome da genitália feminina.

Rito de Eleusis: iniciado diante de sacerdotisa

Rito de Elêusis: iniciado diante de sacerdotisa

Dali a seis meses ocorriam os grandes mistérios, quando os iniciados partiam em procissão barulhenta até Elêusis, onde passariam vários dias em provação. Chegavam sempre à noite, quando então dançavam e cantavam em honra às duas deusas. No dia seguinte ocorria o prelúdio, quando todos jejuavam, purificando-se para o grande encontro. No terceiro dia era conferido o 1o grau, subdivido em três etapas, chamado teleté, a significar “fecho”; era o sinal de que uma vida deveria dar lugar a outra.

Nessa fase da cerimônia, passava-se de mão em mão uma cesta, que em grego também se diz mýstes, dentro da qual objetos sagrados eram velados, entre eles a uva e o trigo; à noite, encenava-se à luz de tochas e por meio da mímica, o rapto de Perséfone. Os iniciados deveriam seguir o caminho de transformação apontado pela deusa e penetrar em suas trevas pessoais.

Aos aprovados, reservava-se o 2º grau, dito epoptéia ou “visão plena”, quando, levados aos recônditos do templo, os neófitos assistiam ao casamento sagrado (hierosgamós) realizado em carne ou por alegoria entre o sacerdote e a grande sacerdotisa, a simbolizar a união de Zeus com Deméter, a garantir a fertilidade da terra para as próximas colheitas. Por meio de um rito coletivo, cada aprendiz podia mergulhar individualmente em seus próprios abismos, a fim de descobrir verdades e deter intimamente seus segredos. Talvez por isso todos aqueles que, desde a Antigüidade, se referem a Elêusis deixem claro que seus mistérios nunca podem ser escritos, mas somente revelados por meio de sua iniciação. Pitágoras foi claro: “Nem tudo pode ser a todos revelado”.  

Neste sentido iniciático, as psicoterapias que privilegiam o inconsciente cumprem semelhante função. Jung, por exemplo, chamou de individuação a este processo psíquico natural voltado para o autoconhecimento, repleto de situações arquetípicas que devem ser vitalmente experimentadas. Estabeleçamos aqui uma analogia entre o mundo inconsciente e o reino de Hades. Sempre que buscamos sinceramente conhecer a sombra que trazemos em nosso psiquismo, apresentamo-nos à grande iniciação. Uma vez descortinado o véu entre o profano e o sagrado, deparamo-nos com o templo de nosso mundo interior, depositário de valores infinitos, agradáveis ou não, que devem ser plenamente assimilados. Nesse exercício, rompemos as amarras que nos prendem à condição mundana, e alçamos vôo a novos planos de consciência, sutis em relação ao antigo, onde vislumbramos um caleidoscópio de possibilidades. A iniciação tem mesmo seu sentido oculto. E ele jaz latente em nossa alma que, feito lagarta, pacientemente espera pelo milagre natural da metamorfose.

ilustr: Bryan Leister

ilustr: Bryan Leister

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