PSIQUIATRIA DA NOVA CONSCIÊNCIA
Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 351, dezembro/2001
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
Cabem mais átomos na cabeça de um alfinete do que o número de pessoas existentes sobre a Terra! Difícil aceitar essa idéia? Façamos as contas: sabemos que cerca de 1023 (100 sextilhões) de átomos ocupam 1cm3; logo, se a cabeça de nosso alfinete tiver 0,5 mm de diâmetro, seu volume será de 0,1 mm3, ou 10-4 cm3, onde caberão 10 quintilhões de átomos. Mesmo que arredondemos para 10 bilhões a população da Terra, estimada em 7 bilhões neste início de séc. XXI, o número de átomos na cabeça do alfinete permanece 1 bilhão de vezes maior!
Exemplo de mesmo gênero nos revela a neurociência, cujos estudos recentes apontam para algo em torno de 100 bilhões de neurônios operando em nosso cérebro, dos quais 20 bilhões se encontram no córtex cerebral, isto tudo sem contar os 500 bilhões de células nervosas da glia, a sustentar este complexo tecido nervoso. Os neurônios comunicam-se entre si por meio dos neurotransmissores, substâncias químicas específicas descarregadas a partir de estímulos bioelétricos nas sinapses, o espaço virtual existente entre as terminações nervosas de uma célula e o corpo da seguinte. A quantidade de ligações que um neurônio do córtex cerebral pode estabelecer com células nervosas circunjacentes é variável. Numa progressão exponencial de ligações, estima-se que cada neurônio possa num átimo impressionar centenas de milhares ou milhões de outros, envolvendo sinapses que, em seu conjunto, bem ultrapassam a casa dos trilhões. Tal complexidade faz da Internet, ainda que seus 600 milhões de usuários se conectassem ao mesmo tempo, mera maquete do processo neuronal!
Dessas contundentes premissas, visualizemos um salto conclusivo: poderá a crescente complexidade da rede cibernética chegar a emitir algum pensamento próprio, ainda que rudimentar, fruto das mutações inerentes aos processos evolutivos? E das relações entre pensamentos simples não nasceriam juízos demarcando o surgimento de uma nova consciência planetária, a sobrepor-se à matriz arcaica que a Terra toda, como rocha, guarda inconscientemente de si mesma? Fosse isso possível, não estaria aí o portal que nos falta para uma comunicação efetiva com inteligências extraterrestres, que só não ocorreu até agora porque nosso planeta ainda não expandiu suficientemente seus potenciais latentes? Arthur Clarke, autor do clássico 2001, uma Odisséia no Espaço, bem explorou o tema do computador inteligente, Hal, que decidiu lutar contra os astronautas que pretendiam desligá-lo. Também previu, ao dar seguimento à sua ficção, nosso contato para 2010. Não seria Clarke um escritor visionário tanto quanto o foi Júlio Verne (1828-1905), que antecipou em Da Terra à Lua (1865) detalhes impressionantes que se realizaram precisamente em julho de 1969, quando a nave Apolo 11 conquistou de fato a Lua?
Paremos de especular; deixo ao leitor o desdobrar desses pensamentos que navegam pela ficção científica. Mas confesso-lhes uma coisa: posso descrever assim, como se lhes narrasse um sonho agradável, meus devaneios de “lógica quântica” que me ocorreram durante meros segundos de reflexão, em meio à prática da respiração holotrópica, processo propiciador de estados alterados de consciência (EAC), que tenho rotineiramente aplicado à minha vida.
Mas, o que vem a ser respiração holotrópica?
Quem cunhou o termo, em 1992, foi o psiquiatra tcheco Stanislav Grof, há mais de 40 anos pesquisador dos estados incomuns da consciência. Holos em grego significa “totalidade”; tropéin traduz-se por dirigir-se a, orientar-se para. Respiração holotrópica é aquela cuja prática amplia a consciência, levando-a a uma experiência de transcendência e inteireza.
Tudo começou em 1956, quando a Faculdade de Medicina de Praga, da qual Grof era médico residente, recebeu do laboratório Sandoz uma substância recentemente sintetizada em Basel (Suíça) pelo químico Albert Hofmann, que propunha aplicar o fármaco no tratamento das psicoses. Grof foi um dos voluntários a experimentar a nova droga cujas propriedades psicoativas revelaram-se notáveis. Era o LSD-25, ou ácido lisérgico. O jovem médico refere-se à sua primeira sessão psicodélica como algo indescritível, cuja culminância o levou à Consciência Cósmica.
Por toda a década seguinte, as experiências psicodélicas de Grof no Instituto de Pesquisa Psiquiátrica de Praga repercutiram amplamente. Em 1967, mudou-se para Baltimore, E.U.A., a convite do Centro de Pesquisas Psiquiátricas de Maryland, onde prosseguiu seu trabalho. Em 1973 foi nomeado Prof. no Instituto Esalen, em Big Sur, California, onde morou até 1987. Atualmente, Grof acumula quase cinco décadas dedicadas ao estudo dos EAC.
Grof coordenou mais de quatro mil sessões de LSD com dezenas de milhares de pessoas, pacientes ou voluntários que, em grupo ou não, forneceram-lhe extenso material que o levou a descobertas revolucionárias sobre o psiquismo. Concluiu que o LSD e demais alucinógenos como a psilocibina, a mescalina, a triptamina e semelhantes, funcionam como amplificadores e catalisadores das atividades psíquicas, capazes que são de abrir a consciência para percepções incomuns e precipitar experiências espirituais extraordinárias, fazendo emergir conteúdos inconscientes que jamais seriam explorados de outra forma.
Além disso, o espírito investigador de Grof o levou ao contato com xamãs de toda a América e a trocar informações com antropólogos e representantes de antigas doutrinas como o yoga, o budismo, o tantrismo, o zen e a ordem beneditina, dentre outras. Interessou-se ainda pela parapsicologia, focalizando-se nas experiências do quase-morte, e encontrou na mecânica quântica base científica para várias concepções cosmogônicas religiosas, incluindo a possibilidade de curas espirituais, além de crença fundamental de que algo, de alguma forma, sobrevive à morte física.
Em fins dos anos 60 e início dos 70, aplicou a terapia psicodélica em pacientes cancerosos terminais. Em Psicoterapia pelo LSD, 1980 (não traduzido), descreve detalhadamente as pesquisas que o conduziram à certeza de que os alucinógenos, longe de seu propagado caráter tóxico, podem ser administrados de modo diligente, não indiscriminadamente a todo e qualquer caso, mas sob a supervisão de terapeutas preparados, visando a uma profunda reformulação do universo psicológico daqueles que os usam, de modo que muitos aspectos da personalidade que requeiram tratamento possam ser especialmente trabalhados.
“As portas da percepção são os sentidos, quando se os transcende, tudo o que resta é o infinito”, escreveu o poeta britânico William Blake (1757-1827), adepto do haxixe. A frase inspirou seu conterrâneo Aldous Huxley (1894-1963) que intitulou Portas da Percepção (1954), o livro em que narra suas experiências sistemáticas com a mescalina. O tema fora introduzido no Admirável Mundo Novo (1932) e voltaria a ser explorado no romance A Ilha (1963). A mescalina é o alucinógeno extraído do peyote, o mesmo cacto mexicano que proporcionou a Carlos Castañeda (1935-1998) compor sua extensa obra de ensinamentos recebidos de seu mestre índio Don Juan. Mas Huxley também experimentaria o LSD; quem lho ofereceu foi o psiquiatra inglês Humphry Osmond, outro pesquisador que se valia do ácido para fins terapêuticos na Universidade de Saskatchewan, criador do termo psicodélico, do grego psico = alma, mente + delos = manifestação, evidência.
Cerca de 20 anos após sua síntese laboratorial, o LSD-25 se tornaria símbolo do movimento artístico da contracultura que se opunha à guerra fria, à intervenção bélica sobre o Vietnã, aos conflitos políticos dos anos 60 e 70, espalhados pelo mundo. Os Rolling Stones e os Beatles, dentre outros grupos, declaravam-se adeptos do ácido. Lucy in the Sky with Diamonds (1967), música cujas iniciais do título esclarecem seu desregrado poético, apresenta imagens próprias do psicodelismo. No Brasil, a Tropicália achava-se afinada com as transformações culturais da época. Gilberto Gil, por exemplo, relata haver tomado algo entre 68 e 74 ácidos lisérgicos, e comenta: “Foram experiências litúrgicas de expansão da consciência. (…) nunca tive bad trip nem problemas colaterais…”
Incomodando sensivelmente o satus quo da política estadunidense, o ácido seria proibido primeiramente nesse país, entre 1965 e 68. Mesmo com as restrições legais, Grof ainda participaria de importantes projetos de pesquisa sobreviventes, mas, pouco a pouco, viu-se obrigado a abandonar o uso criterioso do LSD no tratamento de seus pacientes. Para substituí-lo, ao lado de sua segunda esposa, Christina, desenvolveu a técnica indutora de EAC, à qual chamou de “respiração holotrópica”.
Para que o leitor entenda o alcance do trabalho de Stanislav Grof, reportemo-nos primeiramente ao pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939). Freud abriu as portas do inconsciente para que a psiquiatria por ele entrasse. Postulou que desde o nascimento o inconsciente está presente no ser humano, surgindo, entretanto, como uma tela em branco, sobre a qual vão sendo impressas as marcas de nossas experiências ao longo do desenvolvimento da personalidade. Nele ficariam gravados nossos recalques e todas as demais tendências potencialmente incompatíveis com a vida consciente, como o são os desejos sexuais culturalmente reprimidos. Chamou de Complexo de Édipo, seu principal exemplo, à atração incestuosa que a criança apresenta na primeira infância pelo genitor de sexo oposto ao seu, sentimento este que mais tarde passa e ser censurado pelo superego. O conteúdo reprimido, entretanto, procurando manifestar-se de alguma forma, tanto explode disfarçadamente em nossos sonhos como gera a partir de seu núcleo, as chamadas neuroses.
Já o psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961), divergindo da psicanálise em vários sentidos, aprofundou-se no reino anímico ultrapassando os conceitos do inconsciente freudiano, resultado de recalques das experiências meramente biográficas. Jung explorou a hipótese do inconsciente coletivo, instância absolutamente impessoal e arcaica, depositária das experiências evolutivas do Universo, incluindo as vivências psíquicas da humanidade como um todo. Para a psicologia junguiana, a psique é, essencialmente, o Universo. Depreendemos daí que entre matéria e psiquismo não há diferenças senão na forma como se manifestam seus atributos. Logo, o psiquismo não pode ser considerado propriedade da psicologia acadêmica nem da neurociência, ele está presente em toda parte; responde tanto por seus fenômenos mentais quanto pelo comportamento evolutivo do Universo inteiro.
Extraindo peremptórias abstrações de uma leitura que fiz sob efeito da respiração holotrópica, da “Conclusão” dá última obra de Jung, O Homem e seus Símbolos, 1961 – capítulo este escrito por sua discípula Marie L. Von Franz, cujas palavras valem como as testamentais do mestre -, chego a supor que, sem o auxílio da mecânica quântica, a psicologia toda esteja fadada ao desaparecimento como discurso eficiente. A psicanálise de Freud, apesar de seu inegável valor histórico, acha-se hoje tão ultrapassada quanto a mecânica de Newton, e encontra validação apenas para explicar eventos corriqueiros de nossa realidade psíquica imediata, assim como a física clássica só funciona bem para compreender fenômenos celestes pré-existentes à descoberta dos chamados buracos negros, entidade astrofísica que vem forçando a ciência a mudar seus paradigmas. Além disto, as teorias sobre o comportamento insólito da luz e as pesquisas atômicas que trazem à tona uma miríade de subpartículas, são paradoxos que escapam ao modelo clássico do Universo fechado.
É justamente neste ponto que surge o trabalho de Stanislav Grof, aliado às tendências da nova física, provocador de uma guinada do pensamento acadêmico sobre o mar da consciência.
Segundo Grof, ao nascer já trazemos em nosso inconsciente a memória das experiências intra-uterinas, que ele chama de domínio perinatal. O processo todo de gestação e nascimento passa por quatro fases ou matrizes, responsáveis pela estruturação da personalidade: a primeira matriz se estende do ato da concepção até o instante em que se inicia o trabalho de parto, e nela estamos imersos primordialmente, ligados à fonte original de vida em meio ao fluido maternal. A segunda matriz se imprime em nosso psiquismo ao primeiro instante do trabalho de parto. A terceira matriz sobrepõe-se à segunda tão logo se inicia o primeiro grande conflito humano, ainda uma realidade intra-uterina, a luta do feto pela vida, enquanto avança em pleno trabalho de parto em direção à luz. A quarta matriz responde pelo momento crucial de morte-renascimento; traduz a espera do feto, já expulso, pelo corte de seu cordão umbilical.
Freud nunca o imaginara, tudo isto determina inesgotável fonte de registros em nosso psiquismo, bem como traumas de toda espécie e intensidade relacionados ao amplo processo de gestação e parto. Tais vivências podem ser recuperadas, atualizadas e tratadas, segundo Grof, por meio de sua terapia holotrópica, que preconiza exercícios de hiperventilação. Afinal, a parturiente sempre tem sua freqüência respiratória muito aumentada, e as contrações uterinas privam momentaneamente o feto de oxigênio, criando um estado biopsíquico matricial que nos impressiona fundamentalmente, capaz de formar arcabouços sobre os quais nossos comportamentos, saudáveis ou não, neuróticos ou psicóticos, irão se estruturar.
Validando o conceito do Self junguiano como núcleo da alma e ao mesmo tempo portal para experiências transcendentes, ao analisar milhares de sessões sob a prática holotrópica, Grof identificou ainda a existência do chamado domínio transpessoal, alcançado por EAC, condição em que comungamos de conteúdos arquetípicos, próprios do inconsciente coletivo.
Jung admirava o físico Wolfgang Pauli, para quem “o homem, ao pesquisar o Universo, encontra-se a si mesmo”. A psicologia analítica toda, aliás, é um convite à mecânica quântica para que, de mãos dadas, completem-se mutuamente e dêem seus passos em direção à transcendência. Da mesma forma, o revolucionário Grof insere sua obra em meio às especulações dos astrofísicos Fritjof Capra e David Bohm, reconhece em si a influência do mitologista Joseph Cambpell, e recomenda as idéias do biólogo Rupert Sheldrake. Na pedagogia, quem mais se afina com Grof é Joseph Chilton Pearce, autor de A Criança Mágica, que também defende uma teoria própria de matrizes aplicadas ao desenvolvimento das crianças, e propõe que nosso cérebro funcione tal qual um holograma do Universo.
O mais recente livro de Grof, Psicologia do Futuro (ed. Heresis, RJ, 2000) é obra que vale a pena. Expõe amplamente os princípios da terapia holotrópica, avaliando suas indicações e restrições, visto que ela propicia dramáticas mudanças de percepção a facilitar inspiradores insigths intelectuais e emocionais relativos à nossa história pessoal, aos nossos entraves emocionais, neuroses, problemas de relacionamento, questões existenciais etc… Tais estados, aponta Grof, nunca foram novidade para as culturas pré-industriais, haja vista que doutrinas espirituais milenares, também os ritos xamânicos de qualquer tipo, sempre os levam em conta, seja por meio de rituais complexos a envolver danças, repetições de mantras, beberagens psicoativas, meditação profunda etc, quer por outros métodos, ou por esses todos em conjunto.
Longe de classificar como simples estado patológico qualquer desvio perceptual mais intenso, a terapia holotrópica estimula a ocorrência de processos psíquicos extraordinários, capazes de trazer aos indivíduos maior compreensão sobre si mesmos e sobre a natureza na qual estamos inseridos. De fato, a respiração é o instrumento da vida. E a inspiração, como esta de que Grof está dotado, mero detalhe de genialidade artística!