JOHANN KEPLER, O CÃO VISIONÁRIO
Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 366, março/2003
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
Tarde de verão, precisamente 9 de julho de 1595. Enquanto lecionava, o mathematicus da Escola Protestante de Gratz, Áustria, súbito deixou-se tomar por uma carrada de pensamentos lúcidos que o entregaram a um estado de maravilhado torpor. Absorto, o professor humildemente emudecera ao vislumbrar a perfeição do cosmos. Sua reservada classe de alunos, incapaz de perceber o crucial momento da história da ciência que ali se registrava, interpelou o mestre que, pasmo, em sua estranha iluminação, apenas pôde murmurar: “Deus geometriza! A Geometria é o próprio Deus!”.
Kepler encerrou a aula ali mesmo e correu a seus aposentos para equacionar a questão que o atormentava havia anos. Adepto do sistema heliocêntrico, o jovem astrônomo parecia ter encontrado a fórmula que explicaria o porquê da harmonia existente entre as esferas celestes que mantinham os planetas estritamente revolucionando dentro de suas órbitas circulares.
Filho e neto de feiticeiras, também de um pai libertino, Johann Kepler fora concebido em 16 de maio de 1571, às 4h37min, e nasceu prematuro em 27 de dezembro, às 14h30min, em Weil der Stadt, província de Württemberg, na Alemanha. Quem nos fornece tal precisão de dados é o próprio Kepler que, entrementes sendo aquele que descobriu as três leis fundamentais da astronomia, maior fama alcançou em vida devido às suas acuradas profecias astrológicas. Contam, entre muitos de seus acertos, a chegada de um inesperado rigoroso inverno que assolou seu país, como também a invasão dos turcos que, na data prevista, devastaram toda a região entre Viena e Neustadt, incendiando tudo.
Aos 26 anos, ao traçar a própria carta natal, Kepler assinalaria não sem ironias, que seu nascimento fora presidido por uma má conjunção dos astros, a justificar os tantos infortúnios que o acompanharam pela vida. Sua infância foi débil. Dos 3 aos 5 anos, por vezes esteve à beira da morte; acometido por varíola e escarlatina, herdou daí seqüelas permanentes: uma fístula na mão esquerda que a deformou para sempre, e uma perda significativa da visão, misto de miopia com poliopia anocular (visão múltipla) que lhe prejudicou observar os astros.
Seu pai, Henirich Kepler, soldado mercenário, afastava-se por longos períodos do lar. Este, a propósito, era meramente um quarto num sobrado onde funcionava a taverna da família, em Ellmendingen, que oferecia serviços opcionais de promiscuidade. Sua mãe, Catarine Guldenman, conforme a descreve o próprio filho, era mulher “franzina, faladeira e mau-caráter”. Foi, entretanto, a responsável por imprimir no filho a matriz de seu amor pela astronomia; Kepler bem nos conta como o marcou ter subido com ela um monte, aos 6 anos, para ver um cometa. Também registra a noite em que a mãe o tirou da cama para ver o eclipse da Lua de 31 de janeiro de 1580, “que ficou inteiramente vermelha”.
Numa das empreitadas de Heinrich, Catarine o acompanhou, e o casal abandonou a criança aos cuidados do avô paterno, prefeito da cidade, homem arrogante e de passado licencioso, que logo tratou de enviar a criança à escola, em Leonberg. Após alguns anos, quando seus pais retornaram, descontentes com uma taxa de educação a ser paga, requisitaram o menino para os serviços domésticos, e Kepler serviu na estalagem dos 9 aos 11 anos, sendo em seguida emprestado ao trabalho agrícola. Dois fatores, porém, o levariam de volta à escola: sua constituição frágil, que não satisfazia a seus senhores, e um decreto do ducado de Württemberg, que praticamente tornava obrigatório o ensino, cujo intuito era o de bem propagar a nova doutrina luterana.
Assim, em 1584, aos 13 anos, Kepler ingressaria no Seminário de Adelberg, daí passando à Escola Luterana de Maulbronn, a fim de que se tornasse um clérigo. Destacando-se desde as primeiras lições, dali a três anos receberia do duque de Württemberg o convite para estudar na Universidade de Tübingen, onde aprenderia o grego, o latim e a matemática em meio às grandes correntes intelectuais de sua época. Sua genialidade chamou a atenção do prof. Michael Maestlin, um dos raros pastores convertidos à hipótese copernicana e que, em absoluto segredo, ensinou a Kepler o modelo heliocêntrico. Em 1591, Kepler recebia seu grau de mestre em matemática. Em 1594, por necessidades financeiras, desistiu da carreira religiosa que lhe despontava como natural destino, para assumir o cargo de mathematicus em Gratz.
Voltemos, pois, ao quarto de Kepler para vê-lo entretido nos cálculos que lhe deslindavam a lógica do sublime movimento planetário. Situando um triângulo entre dois círculos, notou que a razão entre seus raios era a mesma existente entre as órbitas de Júpiter e Saturno. Curioso com o resultado, tentou inscrever outras figuras planas entre as órbitas dos demais planetas, mas a relação não se manteve. Adepto do pitagorismo esotérico, e influenciado pelas idéias renascentistas neoplatônicas assimiladas em Tübingen, Kepler sentiu-se inspirado em ajustar às órbitas dos seis planetas conhecidos os cinco sólidos regulares pitagóricos-platônicos, mantendo seu sistema coeso numa série progressiva de esferas, conforme preconizava a cosmologia de Aristóteles. Inseriu o hexaedro (cubo) entre as órbitas de Saturno e Júpiter; inscreveu o tetraedro (pirâmide de base triangular) entre Júpiter e Marte; interpôs o dodecaedro (polígono de 12 faces) entre Marte e a Terra; entre esta e Vênus acomodou o icosaedro (com 20 lados), e adaptou propositadamente seus cálculos finais para fazer caber Mercúrio dentro do octaedro (polígono de 8 lados). Fascinado com a própria descoberta, entendeu ter traduzido em termos geométricos a assinatura divina, capaz de estabelecer a harmônica proporção entre as distâncias planetárias bem como seu regular comportamento. Publicou o original modelo no Mysterium Cosmographicum (1596), pouco antes de completar seus 25 anos.
A obra extraiu elogios de galileu, que viu nela a confirmação da tese copernicana. Mas a popularidade do jovem matemático em toda a Alemanha crescia mesmo devido à publicação de seus almanaques astrológicos que, ano a ano, impressionavam por suas acertadas previsões.
Em 27 de abril de 1597, “num dia de céu calamitoso”, Kepler se casa com Bárbara, viúva duas vezes, uma bruta de 23 anos, descrita pelo marido como “mulher colérica, que jamais soube dar o justo valor à sua obra”; sorte esta que parece ser comum aos gênios. Bárbara daria à luz cinco filhos, três dos quais seriam levados pela peste, e morreria louca dali a 14 anos. Em 1599, Kepler perderia seu cargo em Gratz; Ferdinando, católico, novo arquiduque da Áustria, determinava a expulsão de todos os protestantes. Isto incluía Kepler, autor de heresias.
O Mysterium, entretanto, atraiu o interesse do renomado astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), dono de um extraordinário observatório situado em Praga, no castelo de Rodolfo II, o imperador alquimista, chefe supremo do Sacro Império Romano-germânico. Tycho, também alquimista, convencera o imperador a dar exílio a Kepler. Em 1600, fez dele seu assistente em seu castelo, na Boêmia, e atribuiu-lhe a missão de demarcar a órbita de Marte.
Observador minucioso, Tycho havia escrito uma carta celeste, catalogando 777 estrelas. Kepler, deficiente visual que era, genialmente adaptou lentes convergentes (até hoje chamadas kleperianas) à ocular do telescópio óptico de Galileu, aprimorando-o, com o que aumentaria para 1.005 o número de astros cadastrados. Em 1601, em leito de morte, Brahe expressa a Kepler seu último desejo: “Não deixe meu trabalho em vão”, e o institui herdeiro espiritual de seu saber. Não fosse o fértil contato com o sábio alquimista, talvez Kepler nunca tivesse percebido os erros que seu modelo cosmológico encerrava. Ao dar seguimento às medições da órbita marciana, corrige os cálculos de Brahe e descobre o inusitado: Marte não podia estar preso a uma esfera, sua órbita era elíptica!
Estava aberta a porta pela qual a astronomia definitivamente encontraria o seu caminho. Kepler ocupou-se do estudo das órbitas dos demais planetas, especialmente Vênus e Mercúrio, e em 1609 publica sua obra fundamental, Astronomia Nova, na qual enuncia duas de suas três leis que revolucionariam de uma vez por todas a ciência: 1a: os planetas descrevem órbitas sempre elípticas, e o Sol ocupa um dos dois focos dessas elipses; 2a: os planetas percorrem áreas iguais em tempos iguais em torno do Sol, de modo que se aceleram quando dele se aproximam, e retardam-se quando dele se afastam.
Estas leis entregariam de mãos beijadas ao inglês Sir Isaac Newton (1642-1727) o conhecimento necessário para que delas derivasse a lei da gravitação universal.
Com o exílio de Rodolfo II, em 1611, perpetrado por seu irmão Matias, que o sucedeu no trono, Kepler perde seu apoio e vê-se obrigado a deixar Praga. Assume em 1612 o cargo de professor, em Linz. Um ano depois, já viúvo e afamado, contrai novas núpcias de Susanna Reuttinger, escolhida entre onze pretendentes, que lhe daria outros sete filhos, dos quais só quatro sobreviveriam. Mas sua vida de estudos logo se tornaria um pesadelo quando, numa noite de 1616, sua mãe é levada por vários soldados, amarrada dentro de um cesto, sob a acusação de feitiçaria. Sua melhor amiga, megera de igual estirpe, fora quem a denunciara, alegando ter dela recebido poções alucinógenas que a fizeram adoecer. Nada menos que 49 testemunhas apareceram para atestar que Catarine era bruxa depravada, todas elas pessoas que a detestavam ou que lhe deviam dinheiro.
A prisão se estendeu por seis anos que custaram a Kepler inúmeras viagens a fim de tratar da defesa de sua mãe. Não fossem seu antigo prestígio junto ao duque de Württemberg e seus lúcidos argumentos, sua mãe teria se somado às 39 vítimas queimadas em Weil naquele curto período, entre 1615 e 1622.
O renomado astrônomo sofreria ainda as conseqüências da Guerra dos Trinta Anos, conflito entre católicos e protestantes iniciado em 1618, e passaria alguns anos sem conseguir emprego. Em 1627, Kepler conclui as Tabelas de Tycho Brahe, cumprindo assim sua promessa de terminar o trabalho de seu mestre. No ano seguinte, torna-se matemático da corte de Wallenstein, onde exerce notável papel como adivinho. Entretanto, o rei, mal pagador, esquece-se de honrar os seus salários. Kepler passa a sofrer privações, mal pode cuidar da família e, em 15 de novembro de 1630 morre em Ratisbona, durante viagem na qual pretendia cobrar algumas dívidas.
Inventor do cálculo diferencial, gênio da óptica, autor de tábuas logarítmicas, Kepler legou-nos uma obra variada com quase 90 títulos, entre elas Somniun (Sonho), texto visionário com traços autobiográficos, pioneiro no gênero da ficção científica. Seu protagonista, após visitar Tycho Brahe, vai ter com seus pais, que vendem drogas alucinógenas numa taverna; lá, sua mãe é servida por demônios, um dos quais lhe fornece meios para ir à Lua (a mais ousada de suas já realizadas profecias).
A despojada originalidade de Kepler não pára aí. Ele costumava comparar-se a um cão. Escreveu sobre si mesmo: “Esse homem em todas as coisas tem natureza canina. Sua aparência é a de um cão: gosta de roer ossos e as crostas do pão, (…) como os cães, bebe pouco e come o que lhe dão de mais simples. Vive em movimento, intromete-se na ciência, na política e nos negócios particulares, mesmo nos mais vis… A conversa aborrece-o, e recebe as visitas como um cão; e, se lhe furtam a menor das coisas, arreganha os dentes e rosna. Persegue tenazmente os malfeitores, late, morde seus calcanhares. Ele é mau, morde as pessoas com seu sarcasmo… Possui horror canino pelos banhos e perfumes…”
Dizia seu epitáfio no cemitério São Pedro, de autoria própria: “Media os céus, ora meço as sombras. O espírito é celeste; jaz aqui a sombra de meu corpo”. Sua tumba foi profanada durante a Guerra dos Trinta Anos e as cinzas deste cão visionário, atiradas ao vento, ainda hoje orbitam pelo espaço. A astronomia hoje conclui pela fidelidade de suas leis, e o progresso humano se reconhece verdadeiramente amigo de sua mística ousadia.