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Reconhecendo o Céu de Outono

RECONHECENDO O CÉU DE OUTONO

 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 390, março/2005

Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento. 

Música Celeste (copyright - Azul Music)

Música Celeste (copyright – Azul Music)

Dando seguimento à nossa aventura de reconhecimento do firmamento, apreciaremos agora o fabuloso mapa de outono, particularmente marcado pela presença da mais popular constelação austral, Crux, ou o Cruzeiro do Sul, bem como pela grande quantidade de nebulosas galácticas que este céu nos oferece.

De frente para o sul (estando, portanto, o leste à sua esquerda e o oeste à direita), o leitor poderá facilmente identificar o Cruzeiro a pouco mais de meia altura entre o horizonte e o zênite celeste, circunscrito em sua posição vertical sobre o braço da Via Láctea, cuja extensa faixa, durante os meses de março, abril e maio, corta o céu de sudeste a noroeste.

Embora o Cruzeiro do Sul seja uma das menores constelações, sua fama, inversamente proporcional a seu tamanho, permite-lhe ser facilmente reconhecido até mesmo pelas crianças do Hemisfério Sul, principalmente as brasileiras que, desde os bancos escolares, o vêem também tremular, entre outras constelações, na abóbada da bandeira nacional. O Cruzeiro é delimitado por quatro estrelas de 1ª magnitude: alfa e gama Crucis compõem o corpo vertical da cruz; beta e delta Crucis traçam o braço horizontal que a corta. Uma quinta estrela, épsilon Crucis, de 3ª magnitude, individualiza o nosso Cruzeiro de modo a torná-lo inconfundível diante de tantos outros falsos cruzeiros que podemos encontrar pelo céu; ela se encontra na metade inferior da cruz e à direita de seu braço vertical, sendo por conta dessa sua posição sui generis apelidada de estrela “intrometida”.

Embora muitos acadêmicos reputem ao navegador francês Augustin Royer a “criação” deste asterismo, em 1673, o fato é que Ptolomeu, na Antigüidade, já havia catalogado suas quatro principais estrelas, e o grupamento foi “redescoberto” por vários pilotos dos séculos XV e XVI, que dele se serviram quando das primeiras incursões pelos mares do sul. O documento náutico mais antigo que registra o nome Crux é justamente a carta enviada ao Rei D. Manuel por mestre João, astrônomo que acompanhou Pedro Álvares Cabral em sua viagem de descobrimento do Brasil.

Aglomerado aberto Caixa de Joias

Aglomerado aberto Caixa de Joias

Com o auxílio de um simples binóculo, o leitor poderá notar que alfa e gama Crux são estrelas duplas. Alfa, beta e delta Crucis são alaranjadas, mas gama Crucis apresenta uma luminescência de contrastes que variam do azul ao alaranjado, cores de suas respectivas componentes. O leitor não deve perder o espetáculo e procurar por kapa Crux, situada a 1º (um grau) sudeste de beta Crucis. A olho nu ela parecerá um ponto comum de 4ª magnitude, mas se observada por meio de um binóculo de teatro ou por um modesto telescópio, o leitor se surpreenderá com uma miríade de estrelas coloridas, cuja concentração nuclear forma o desenho de uma letra A rodeada por 50 estrelas de brilho menor, dotadas de ampla variação cromática do verde e do azulado até o violeta. Não por acaso esse aglomerado aberto, NCG 4755 (isto é, corpo estelar de nº 4755 do New General Catalogue of Cluster and Nebulae), foi denominado por John Herschel, seu descobridor, de Caixa de Jóias.

Constelação do Centauro, a envolver o Cruzeiro do Sul

Constelação do Centauro, a envolver o Cruzeiro do Sul

Alinhando beta e gama Crucis em direção leste, iremos encontrar facilmente outras duas estrelas brilhantes; pela ordem de proximidade com o Cruzeiro, a primeira é azulada e a segunda amarelada. São beta e alfa Centauri, de magnitude 1 e zero respectivamente, ditas Guardiãs do Cruzeiro, ou ainda, em inglês, chamadas de Pointers, posto que parecem compor uma seta a apontar para a Cruz. Os centauros são bestas mitológicas originárias da Tessália e caracterizam-se por trazer sua metade humana sobre a metade animal; são homens, portanto; geralmente arqueiros, mas ao mesmo tempo quadrúpedes, com corpo de cavalo. O Centauro envolve o Cruzeiro do Sul, fazendo com que a cruz esteja quase toda protegida sob seu ventre e suas quatro patas. Ambas as constelações são as formações mais notáveis do céu de outono, não só pelas importantes estrelas que apresentam, mas também por ocuparem uma área nobre do céu, onde há grande concentração de aglomerados estelares, realçados por sua nebulosidade esbranquiçada que contrasta com áreas mais escuras que o normal, provenientes da absorção da luz por nebulosas escuras galácticas que aí também se encontram, como é o caso do Saco de Carvão, que o leitor identificará ao fundo do Cruzeiro do Sul.

Detalhe de óleo sobre tela de Eugène Delacroix (1798-1863)

Detalhe de óleo sobre tela de Eugène Delacroix (1798-1863)

Um dos aglomerados galácticos mais interessantes é o NGC 3766, situado a 2º Norte de alfa Centauri, formado por mais de seis dezenas de estrelas, visível mesmo à vista desarmada em noites especialmente límpidas, num céu afastado das luzes urbanas. O leitor encontrará outro aglomerado aberto a 2/3 da reta que imaginariamente podemos traçar entre alfa Centauri e a “intrometida”. De aspecto mais tênue que o anterior, pode ser bem observado através de simples lunetas de 6cm de abertura que tenham 25 vezes de aumento. O maior dos aglomerados globulares, que aos nossos olhos não equipados se mostra como um astro difuso de 4ª magnitude, é o NCG 5139, ou Ômega Centauri, situado ao norte de beta Centauri, a 4/5 de uma linha imaginária que dela parte e se dirige a épsilon Centauri. Descoberto por Edmund Halley, em 1677, na Ilha de Santa Helena, ao telescópio comum Ômega Centauri se revela um espetáculo à parte, com número de estrelas simplesmente incontável, cena de surpreendente beleza!

Ômega Centauri (NGC 5139 – imagem colhida pelo Hubble SpaceTelescope)

  Alfa e beta Centauri são respectivamente chamadas pelos árabes de Agena (corruptela de algenu, ou “joelho”) e Rigel Kentaurus (que quer dizer “pé do Centauro”), a indicar os membros inferiores dianteiros do animal. Excetuando-se o Sol, a estrela visível a olho nu mais próxima de nós é alfa Centauri, que se situa a 4,3 anos-luz de distância. Isto quer dizer que levaríamos cerca de 4 anos e meio para alcançá-la, caso pudéssemos viajar até ela numa linha reta a 3oo.ooo Km/seg, que é a velocidade estimada da luz.

Sistema duplo estelar de Alfa Centauri

Sistema duplo estelar de Alfa Centauri

Em 1689, Richaud, astrônomo francês, descobriu que Alfa Centauri constituía um sistema duplo, cujas componentes orbitam em torno uma da outra. Desde então, com um período de 80 anos, já se registraram quase quatro voltas da estrela secundária em torno da principal. Ao telescópio pode-se observar com nitidez esta curiosa “dança”, que alcançou maior afastamento em 1990 e que será de difícil distinção, mesmo aos telescópios, em 2040. Hoje sabemos que o sistema de alfa Centauri, em verdade, é triplo. Em 1916, Innes, astrônomo holandês, naturalizado sul-africano, identificou uma estrela de 11ª magnitude (não visível aos olhos desarmados) nos arredores do conjunto, ainda mais próxima da Terra, precisamente a 41 trilhões de quilômetros, e batizou o novo astro com o nome latino de Proxima Centauri. Para especularmos um pouco acerca da relatividade das distâncias astronômicas, imagine o leitor que se pudéssemos viajar até esta estrela mais próxima numa média de 40 mil Km/h (velocidade da nave Apolo 11), por exemplo, hipoteticamente chegaríamos lá daqui a 150 mil anos!

Constel.Leão.

Peço agora ao leitor que se volte de frente para o Norte (o oeste ficará à sua esquerda e o leste à direita), para que possamos dar seqüência à observação das constelações zodiacais. Havíamos em nosso texto sobre o céu de verão chegado em Câncer, cujo desenho celeste nos lembra precisamente uma forquilha. Nos horários apontados nos dois mapas celestes que acompanham este texto, veremos Câncer caminhando para o descambo, à baixa altura, a noroeste. A estrela de 1ª magnitude mais próxima de Câncer em nosso mapa, branco-azulada, já pertencente à constelação de Leão, é Regulus, ou alfa Leonis, que se encontra justamente sobre a linha imaginária da eclíptica, a noroeste, à meia altura entre o horizonte e o zênite.

Héracles em pele do leão de Nemeia

Héracles em pele do Leão de Nemeia

 Regulus está a 84 anos-luz de distância e é 160 vezes mais luminosa que o Sol. Seu nome significa “Pequeno Rei”, e assim foi batizada devido a um descuido de Ptolomeu, que lhe deu menor importância que às outras três “estrelas reais”, Aldebarã (já vista), Antares e Fomalhaut, que praticamente dividem o céu em quatro “reinos” de tamanhos quase iguais. A mitologia clássica nos conta que o primeiro dos 12 trabalhos de Héracles foi matar o invencível leão de Neméia, e que, ao fazê-lo, o herói vestiu sua pele de modo a servir-lhe de couraça, atirando aos céus com toda a sua força as vísceras do animal, que até hoje permanecem imortalizadas em nosso firmamento. Aqui do Hemisfério Sul, vemos a fera de cabeça para baixo e Regulus representa o peito ou o coração do animal. A segunda estrela mais brilhante de Leão, de 2ª magnitude, é beta Leonis, ou Denébola, nome árabe que se traduz por “cauda”. Em suas cercanias, inúmeras estrelas não percebíveis a olho nu poderão ser vistas mediante um pequeno binóculo. Gama Leonis, chamada pelos árabes de Algieba, a significar “testa”, na verdade delimita a juba sobre as espáduas do felino e se constitui numa bela estrela dupla de revolução bastante lenta (619 anos), cujas cores se contrastam fortemente.

Constelação da Hidra

Constelação da Hidra

Hidra de Lerna2.0.3Um pouco acima de Câncer, o leitor encontrará uma das mais compridas constelações celestes, a tortuosa Hidra, cuja boca se demarca por delta Hydrae e cuja cauda vai terminar a meio caminho entre a cabeça humana do Centauro e a constelação de Virgem. Sua estrela mais brilhante é Alphard, que em árabe significa “a solitária”, facilmente localizada se a imaginarmos como uma das pontas de um triângulo quase eqüilátero, cujos demais vértices são Regulus e delta Cancri, sendo esta última a estrela que se encontra no exato ponto de cruzamento da forquilha.

Constel.Virgem

Virgem se localiza sobre a faixa imaginária do zodíaco, logo após Leão. Para que o leitor identifique a constelação, basta que procure por sua estrela mais brilhante, alfa Virginis, também conhecida por seu nome latino Spica, a Espiga. Isto porque na Antigüidade mesopotâmica, no vale do Eufrates, a deusa Isthar, rainha das estrelas e símbolo de fertilidade, era representada com uma espiga de trigo nas mãos.  Eis aí uma região do céu onde ocorre uma extraordinária concentração de galáxias. Como exemplo citemos o aglomerado galáctico de Virgem, nas proximidades de épsilon Virginis, a estrela que se destaca do conjunto, mais ao norte, no prolongamento imaginário de uma reta que se inicia em Regulus e passa por Denébola. Ainda que melhor se as observe com o auxílio de bons telescópios, convém citar que há nessa região do céu mais de 2.500 galáxias a uma distância média de 20 milhões de anos-luz, o que torna tal área propícia também ao surgimento de supernovas. Isto faz de Virgem um campo infinito onde os astrônomos pesquisam, se divertem, e concluem a respeito da extrema pequenez da condição humana diante dos insondáveis mistérios de um cosmos todo estrelado! E contemplar os astros, deveras é magia capaz de nos prender na eternidade do espelho dos deuses, sobre o qual especulamos em busca de nossa própria imagem. Aguardemos pelas sempre límpidas noites de inverno, cujo céu visitaremos juntos em nossa próxima viagem.

Aglomerado Galáctico de Virgo (Hubble Space Telescope)

Céu de Outono - vista para o Norte

Céu de Outono – vista para o Norte

Obs: nosso texto está em acordo com estas duas cartas celestes que o acompanham, que representam uma parte do céu noturno do Hemisfério Sul, válidas para todo o outono.

Céu de Outono - vista para o Sul

Céu de Outono – vista para o Sul

Este é o mesmo céu que o leitor encontrará, por exemplo, em:

1º de março às 00h30min

15 de março às 23h30min,

1º de abril às 22h30min,

15 de abril às 21h30min,

1º de maio às 20h30min e

15 de maio às 19h30min.

N.B.: As duas imagens das constelações do zodíaco aqui apresentadas, Leão e Virgem, foram retiradas de livros que as retratam no Hemisfério Norte; logo, identificar-la-emos respectivamente em nosso céu austral como se estivessem de “cabeça para baixo” em relação às suas imagens, neste texto respectivamente postadas.

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