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Caminho do Sol – saúde e cultura ao alcance dos pés

CAMINHO do SOL

(saúde e cultura ao alcance dos pés)

 Texto de Paulo Urban (*)

Fotos de Ana Paula Brasil (**) 

Todo herói cumpre uma missão, toda vida tem seu caminho, toda experiência é sempre um aprendizado.

O plano começara a tomar forma em 1989: trilhar o Caminho de Santiago pela rota francesa, partindo de St.-Jean-Pied-de-Port, sob os pés dos Pirineus. Questões particulares, porém, forçaram-no a retardar seus planos por cabalísticos sete anos. Em 1996, finalmente, lá estava o empresário José Palma, como estrangeiro em terra estranha, entre pessoas que não conhecia, no meio de muitas línguas, concentrado no citado vilarejo medieval, pronto para lançar-se a uma peregrinação que o levaria à Catedral de Santiago de Compostela, no norte da Espanha, e que ao longo de seus 774km transformaria inteiramente sua vida.

O que antes se propusera a ser uma simples aventura com sabor esportivo atingiria fronteiras pessoais desconhecidas, muito além do saber comum que nos atesta serem as caminhadas uma excelente terapia para corpo e mente. Palma confessa: percebeu-se “ser humano” pela primeira vez na vida aos 46 anos, entre desconhecidos, trajando roupas simples de andarilho, acompanhado de sua vieira e munido de seu cajado. Em meio a seus pares peregrinos viu-se despido dos valores sociais cotidianos que seu modo de viver mecanizado lhe impusera desde quando iniciara sua lide empresarial bem sucedida. Ele nem podia imaginar, mas o caminho até Santiago lhe rasgaria alguns dos véus necessários a todo aquele que deseja encontrar-se consigo próprio. E aprenderia uma verdade peregrina: ainda que trilhasse certos trechos na companhia de amigos, nada é melhor que um caminho para que possamos nos achar inteiramente a sós; e a solidão é sempre um grande exercício para a alma.

Ampliemos o tema: Santiago foi apóstolo de Cristo, filho de Zebedeu e irmão de São João; é também patrono dos médicos e dos alquimistas. Este seu segundo atributo, ironicamente, decorre da ação hegemônica da Igreja que, preocupada em abafar as crenças pagãs, a partir do século XI já conseguira fazer dele um destemido cavaleiro espadachim “mata-mouros”. Mais que isso, uma lenda menos popular conta que Santiago teria vencido Hermes Trimegistro numa disputa de lógica travada numa encruzilhada do caminho, em terras espanholas; o deus grego, astuto demais, sem que se desse por rogado, entretanto, teria aceito a derrota negociando com o santo sua sina, passando-lhe sua árdua missão de ministrar o saber alquímico aos homens. Por sinal, a rota que leva todo peregrino à sua tumba na Catedral de Compostela (corruptela de “campo de estrelas”), no imaginário alquímico é vista como uma projeção da Via Láctea, símbolo da “prata líquida”, complementar ao “ouro oculto”, ambos ícones de perfeição da Obra Mercurial.

Nada distante dos preceitos da busca espiritual e inspirado pela leitura de Oração do Coração (ed. Paulinas), obra de um peregrino russo anônimo, Palma percorreu todo o trajeto praticando disciplinadamente certos exercícios respiratórios associados à repetição mântrica de orações voltadas à purificação do espírito.

Foram 27 dias de empenho e devoção até que as portas da Catedral de Santiago pudessem receber seus pés cansados, heróis de uma jornada peregrina. Ao longo do percurso, entretanto, Palma deu-se conta de que muitos são aqueles que se lançam a essa empreitada, sem conhecimento do que irão enfrentar ao caminhar 7 ou 8 horas por dia, sem mínimo condicionamento físico prévio, sem sequer conhecer direito como adequar o peso de uma mochila ou como amarrá-la ao corpo; incautos que temerariamente se submetem a estresses desnecessários, suficientes para causar tendinites, fadigas musculares, bolhas e outras pequenas ou grandes complicações.

Catedral de Santiago da Compostela em noite de 25 de julho, dia de São Thiago – foto do renomado fotógrofo Guy Veloso, peregrino também.

Ao retornar ao Brasil, encontrou dificuldades em lidar com a demanda física e espiritual que aquele mês na Espanha havia-lhe criado: era necessário continuar caminhando regularmente, mas agora nem os quarteirões urbanos nem os parques públicos já lhe serviam, pois não somente se tornam de todo monótonos quando se os percorre tantas vezes, como se prestam mais ao convívio social do que ao aprimoramento pessoal. Era fundamental que houvesse um ambiente propício e seguro, destinado não só a bem preparar os futuros peregrinos, mas também a dar conta da natural demanda de continuar percorrendo a pé grandes distâncias, assimilada por muitos que cumprem o Caminho de Santiago.

José Palma, idealizador do Caminho do Sol.

Dessa inquietude nasceu seu sonho que, marcado desde o início por algumas sincronicidades, se concretizaria dali a poucos anos. Morador de Águas de São Pedro (SP), Palma deu-se conta de que de sua casa sempre vislumbrara montes e planícies que muito se assemelham à paisagem que fora conhecer na Galícia. Observou também que a data consagrada a Santiago era justamente a mesma do aniversário de sua cidade: 25 de julho.

Em novembro de 2001, ocorria o I Encontro Internacional de Peregrinos, em Fortaleza (CE), e para lá se dirigiu o empresário. Não sabia, porém, se teria sequer a chance da palavra, pois se inscrevera como mero participante. Suas questões, entretanto, repercutiram amplamente: afinal, seu projeto de criar um caminho brasileiro preparatório para o de Santiago, atendia aos anseios de todo peregrino, fosse este estreante ou veterano.

Junto da receptividade encontrada em Fortaleza, Palma recebeu outro sinal: a notícia de que Jesus Jato, um amigo espanhol, hospitaleiro de Villafranca del Bierzo, preparava-lhe uma surpresa: ofertar-lhe-ia uma imagem de Santiago da Compostela. Julgando que tal presente fosse digno de todos aqueles que têm alma peregrina, Palma decidiu criar em sua cidade a Casa de Santiago, onde pudesse ser instalada a imagem, a servir como ponto de chegada dos peregrinos que se lançassem ao caminho que ora nascia, e que recebeu o Sol por seu padrinho. Com apoio da prefeitura, no horto florestal de Águas de São Pedro, já no 1o dezembro e diante da ilustre presença do hospitaleiro Jesus Jato, a pedra fundamental para a construção da Casa de Santiago era lançada.

Mas para que o Caminho do Sol se tornasse adequado, era preciso equacionar distâncias: cerca de 25km por dia, que fossem preferencialmente percorridos por questão de segurança em área rural, passando por terras particulares, em fazendas que se dispusessem a receber peregrinos, atendendo-os em suas necessidades e oferecendo por baixos custos, pernoite e refeição.

Aceitando sugestão do amigo Rodrigo Garcia, estudioso da navegabilidade do rio Tietê, e preocupado com o fato de que o novo Caminho pudesse também servir ao resgate de valores históricos nacionais, Palma decidiu-se por fazer de Santana de Parnaíba seu ponto de partida. Para tanto fez estudos práticos; por inúmeras vezes se lançou obstinadamente a pé por trilhas distintas, visitando fazendas em diferentes municípios, tratando com seus proprietários a devida autorização para pôr em prática seu projeto. Neste particular recebeu enorme ajuda de Sérgio Cietto, nome ligado à Secretaria de Agricultura; nos dizeres de Palma “um anjo da guarda do Caminho”, profundo conhecedor dos produtores locais bem como de todo o interior de São Paulo. Conforme o percurso pouco a pouco se definia, setas amarelas iam sendo pintadas em pontos estratégicos, de modo que pudessem bem orientar os futuros peregrinos.

Cumpre dizer, um tripé de nobres intenções sustentava o ideal: 1o) o Caminho do Sol teria por propósito bem conscientizar os postulantes à peregrinação em Santiago; 2o) seria um caminho sobretudo de amor, de modo que as pessoas ao longo do trajeto pudessem se envolver em plena relação de fraternidade (e é o que de fato ocorre durante seus 11 dias de caminhada) e; 3o) prestar-se-ia como meio de resgate de nossa cultura e identidade histórica.

Nesse aspecto, outro elemento sincronístico levou Palma a conhecer Emanuel Barbosa, historiador e genealogista, morador de Stª. de Parnaíba, proprietário da Pousada 1896 (ano de sua última reforma), uma casa tombada pelo patrimônio histórico, que guarda em sua arquitetura nosso saudoso passado colonial.

Emanuel é quem confere o 1o carimbo ao passaporte dos peregrinos, e sente-se particularmente honrado por hospedar pessoas que estarão na manhã seguinte partindo em busca de algo maior em suas vidas, escolhendo trilhar a senda que as levará ao inevitável encontro de si mesmas. “Esses peregrinos, diz ele, ainda têm a grata oportunidade de percorrer caminhos similares aos que foram desbravados por nossos destemidos bandeirantes; e se me permitem o prazer da preleção, não saem daqui sem antes se imbuírem de entusiasmo semelhante àquele que moveu toda uma infinidade de aventureiros em busca do ouro no interior do país”.

Emanuel nos conta com orgulho a história da mameluca Suzana Dias, neta do cacique Tibiriçá, mulher dotada de extraordinário expediente: “Em 1560, Suzana solicitou ao rei de Portugal, e dele recebeu, uma sesmaria em área extremamente estratégica, a englobar o primeiro obstáculo natural (uma cachoeira) do rio Anhembi-Tietê. A região escolhida por Suzana era chamada pelos índios de Parnaíba, isto é, “lugar difícil de se passar”. Conseguiu ainda, pouco mais tarde, autorização papal para alterar o santo onomástico do local (que era Santo Antônio) para Sant’Ana, a lembrar seu próprio nome.

Ora, aos aventureiros que aportavam em São Vicente não restava outra opção: não lhes interessava permanecer na cidadela vizinha de Santo André da Borda do Campo, fundada pelo Pe. Anchieta, pois suas terras eram inférteis devido à falta d’água; mesmo São Paulo de Piratininga, ainda um povoado incipiente, era pouco convidativo àqueles que desejavam enriquecer. Por isso os exploradores se lançavam rio-adentro, em direção aos sertões desconhecidos, na esperança de encontrar ouro e pedras preciosas. A primeira cachoeira, entretanto, obrigava-os a pernoitar em terras de Suzana Dias. Esta cobrava de seus hóspedes um pedágio, a ser pago sempre em metal, enquanto providenciava para que as embarcações dos viajantes seguramente descessem por um sistema de cordas ao nível inferior do rio.

Suzana escolhera ainda casar uma de suas filhas com um alemão ferreiro, chamado Johannes Betting. A partir dos metais arrecadados seu genro passaria a fabricar armas de todo o tipo, formando assim, à revelia da Coroa, um arsenal próprio, com cujo aparato Suzana Dias tanto dava apoio às expedições como sobre elas todas impunha seu respeito. Nascia assim, em Stª. de Parnaíba, um verdadeiro centro de montagens de bandeiras, ao qual deram seguimento seus filhos e outros aliados, como, por exemplo, seu financista, o Pe. Guilherme Pompeu de Almeida, que negociava o apoio aos estrangeiros em troca de 50% dos lucros que estes viessem a obter, de modo a garantir assim, facilmente, seu próprio enriquecimento.

Emanuel conta história aos peregrinos como se lhes desse uma benção, o que os inspira ao longo de seus próximos 240km, cruzando 13 municípios, até o destino em Águas de São Pedro. Nosso texto, entretanto, não ficaria estético, posto que abrimos um parêntese no local onde o caminho se inicia, se não tratássemos de fechá-lo no ponto em que termina a caminhada.

A fotógrafa Ana Paula Brasil

Ao atingirem a Casa de Santiago, os peregrinos anunciam sua chegada badalando o sino à porta do Horto. Os depoimentos prestados no altar ecumênico, sob o olhar de Santiago, são de todo emocionantes. Ao longo do percurso, não há quem prescinda da ajuda alheia, lição que nos ensina a ser simples no respeito e no trato com o próximo.

Em Águas, os bravos peregrinos podem se abrigar em Ara Solis (cujo nome latino significa “altar do sol”). É o primeiro albergue brasileiro a funcionar no mesmo estilo dos albergues espanhóis; mais um aprendizado de cooperação e solidariedade para aqueles que pretendem ir a Compostela. Acácio da Paz e sua esposa, Orietta; ele brasileiro, ela espanhola, ambos hospitaleiros de Ventosa (Espanha), são os fundadores de Ara Solis e orientadores dos voluntários que nele trabalham. O albergue mantém-se por conta de doações espontâneas de seus hóspedes, e seu dístico nos ensina que “Ontem alguém deixou o que hoje você recebe”.

Todo peregrino que escolhe trilhar o Caminho do Sol não somente se prepara para novas empreitadas como descobre que tanto na vida, como na Obra alquímica, os verdadeiros caminhos nunca terminam. Toda chegada é sempre uma porta que se abre para um novo recomeço. Peregrinos aprendem, passo a passo, a colher estrelas pelos campos, deixando atrás de si um rastro luminoso que convida a outros tantos a trilhar a grande senda interior. Tal alegoria, transposta às raízes históricas de um Brasil que se fez à custa de vidas que se dedicaram a explorar riquezas ocultas nesse Novo Mundo, permite-nos enxergar na alma peregrina um caráter genuinamente bandeirante. Mas guardemos a diferença: os peregrinos, bandeirantes do presente, estão na eterna busca do ouro alquímico, símbolo da perfeição que se oculta em nosso mundo interior. Afinal, um Caminho que traz o Sol por seu padrinho, tem mesmo um quê de alquimia a cada passo; e a descoberta da Pedra pessoal é sempre questão de paciência e oração.

Todo herói cumpre uma missão, toda vida tem seu caminho, toda experiência é sempre um aprendizado.

 (*) Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

(**) Ana Paula Brasil é fotógrafa e artista plástica : e- mail: peregrinapaula@hotmail.com

Leia também, aqui no Amigo da Alma: “Caminho do Sol: uma Senda de Iluminação”

Serviço:

Caminho do Sol – informações e adesões: www.caminhodosol.org    fone: (11) 2215-1661

Pousada 1896:   fone (11) 4154-1680

2 Comments

  1. mafe disse:

    Ola Paulo, achei super legal sua iniciativa, que considero muito interessante para divulgar.
    tenho muito interesse em fazer o caminho do sol com uma turma este ano.
    parabens, o site ficou ótimo!, abs

  2. marise costa-aguilar disse:

    Lindo Paulo, quero ir ao Brasil, e quem sabe ter a oportunidade de fazer a caminhada ai.
    Abraco

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