CAMINHO dos ANJOS
Texto de Paulo Urban* e Fotos de Ana Paula Brasil **
O Caminho dos Anjos é uma nova rota de peregrinação pelo interior histórico-esotérico de Minas. Consagrado ao Arcanjo Miguel e sob a proteção de suas asas, o Caminho desafia cada um de nós a encontrar três segredos espirituais, ao mesmo tempo em que nos permite a preciosa chance de peregrinar pela realização de três justos desejos. Acompanhe aqui a peregrinação de Paulo Urban, realizada em fevereiro de 2008.
Estava a um passo do novo desafio: percorrer a pé, em sete dias, os 133 km do recém-criado Caminho dos Anjos, que se desenvolve em meio a uma espetacular paisagem, pelo interior histórico-esotérico de Minas Gerais.
Seu ponto de partida por si só é forte: éramos sete reunidos sob o altar da Sagrada Família, igreja matriz de Três Corações, arquitetura neogótica, toda azul celeste em sua figuração externa.
Quatro guerreiros eu conhecia bem, há um ano percorrera com eles o Caminho do Sol, pelo interior de São Paulo. Melissa e Ana Paula eram nossa força feminina; Marcelo e Alexandre, idealizadores do Caminho dos Anjos, os que haviam nos convidado para pré-inaugurar essa rota de peregrinação. Meus novos parceiros eram Carlos, um jovem de Aiuruoca, e Albino Neves, o mais experiente do grupo. Em sua mochila ele trazia o cacife de ser o idealizador do Caminho da Luz, outra já consagrada rota de peregrinação mineira que, altaneira, se encerra no alto do Pico da Bandeira.
Sendo consenso de que já havíamos feito nossas particulares intenções, Marcelo me surpreendeu, pedindo-me uma prece em nome de todos. Sem saber direito o que dizer, deixei falar meu coração. Lembro ter observado que me sentia pequeno diante da empreitada. Afinal, soberano é o mar, eu lhes disse. E é preciso absoluto respeito às suas regras para que possamos bem conduzir nosso barquinho. Analogamente, grandiosa é a vida, que nos oferece a breve graça da existência, e portentosos os seus caminhos, pelos quais, frágeis e corajosas criaturas que somos, ousamos nos lançar em busca de uma pessoal missão, no intuito de realizá-la plenamente.
Trocávamos olhares cúmplices das dificuldades que, sabíamos, iríamos encontrar, mas também esperançosos por saber ler os sinais ocultos capazes de nos guiar e nos ensinar vencer distâncias. Desejamo-nos reciprocamente um Buen Camiño à moda de Santiago. Hora de partir. Uma largada chuva desabava. Segundo a tradição espanhola, ela é bom agouro aos que chegam em Compostela. Para nós, sugeria ser uma espécie de autorização divina a banhar a nossa causa.
E foi assim, contemplando aquela chuva, antes mesmo de pôr os pés na estrada, que me sobreveio um primeiro entendimento: não à toa o marco inicial do Caminho dos Anjos era o portal da Sagrada Família. Ora, não somente estavam ali a nos velar os três corações míticos de Jesus, Maria e José (daí o nome da cidade), como intuí que ao longo de toda a jornada eu deveria buscar por três razões, ou três grandes segredos que jaziam ocultos em meu próprio coração. E como peregrinar é sempre um ato de intenção, o Caminho dos Anjos ainda me oferecia bem ali, à porta da igreja matriz, após as orações preparatórias, a chance de eu expressar três de meus mais sinceros desejos.
Parei e refleti. O desafio era razoável. Não tinha a mínima idéia dos segredos a desvendar, mas enxerguei nitidamente quais eram os meus três desejos, por cuja realização eu peregrinaria. Ao abrir os olhos, o pessoal já me acenava do outro lado da rua. O jeito foi vestir a capa, proteger a mochila e encarar o compromisso. Cruzar com aquela gente ainda não acostumada às incursões peregrinas foi algo pitoresco. Éramos alvo de toda curiosidade. As mochilas nas costas, as capas de plástico a deixar pra fora somente nossas caras forasteiras, Ana Paula fotografando com equipamento e papo de outro mundo, tudo nos conferia ares de um bando de ETs de Varginha invadindo a cidade vizinha de Três Corações.
Logo ganhamos a estrada de terra que nos levaria por seus 17 km até a Fazenda das Posses, local do primeiro pernoite. Eu carregava ainda uma chata dor nas costas, de moer os ossos, advinda dos desgastes do trabalho clínico, também das noites em claro escrevendo para cumprir os prazos. Já amassávamos o inevitável barro quando Alexandre me pegou pra conversar. Ele ensaiou um assunto, depois outro meio assim… Percebendo seu rodeio, disse-lhe, treinando o mineirês: “Aqui, pó falá, sô! Que cê qué dizê, uai?” E fui ficando surpreso a cada passo com o relato. Reservadamente, contou-me como lhe nascera a idéia de criar o Caminho dos Anjos. Eu já suspeitava, tudo era fruto de uma revelação pessoal, que eu constatei ser, em verdade, coletiva!
Ora, as coisas começam em 2001, em Santiago da Compostela. Precisando fazer hora para aguardar seu vôo, sem idéia do que fazer e fisicamente exausto de sua peregrinação pela Espanha, Alexandre assistiu a cinco missas seguidamente, quatro delas na catedral e a última numa igreja geralmente despercebida pelos peregrinos. Ali, durante a homilia (e ele tentou justificar-se por estar cansado, pelo seu meio-jejum, que talvez não estivesse em seu completo juízo), disse que podia jurar ter ouvido do próprio Arcanjo Miguel a orientação para que criasse um caminho de peregrinação voltado à humanização e à conscientização das pessoas, para assim colaborar no resgate espiritual do mundo em que vivemos, tão carente de luz e de discernimento. Ele ainda passou uns anos tentando racionalizar a experiência, desvencilhar-se da suposta missão, mas uma série de circunstâncias, alheias à sua vontade, sempre o colocavam de novo diante desse compromisso.
Em seu detalhamento, um caso de ordem parapsicológica. Qualquer colega mais desavisado lhe receitaria uns remedinhos… Mas, como o primeiro psiquiatra a ouvir-lhe a história era eu, igualmente um doido por histórias desse tipo, lembrei que em novembro do ano anterior, também eu me sentira chamado por Miguel a empunhar a sua espada de justiça, que só age no “amor com rigor”. Minha história não cabe aqui, mas repassando-a em memória e observando a sincronicidade de que vários pacientes me traziam ultimamente relatos similares, guardadas as diferenças de suas “reveladas” missões, era possível constatar o caráter arquetípico do fenômeno. Sim, parece óbvio, estamos às portas de um novo clímax do processo evolutivo da consciência planetária, patamar propício a uma mutação psico-genética que se avizinha; ouso dizer, prestes a ocorrer nas gerações vindouras. Quanto maior consciência temos dela, mais atuamos como ativistas quânticos em prol de sua ocorrência e, talvez o seu propósito não seja outro senão o de levar a humanidade a encontrar sua cura, a superar essa imensa crise de valores em que caímos.
Resumindo: o Caminho dos Anjos, confessou-me Alexandre, tem o Arcanjo Miguel por seu patrono e está entregue a toda a legião de anjos que, sob seus auspícios, nos protege. Por isso são azuis as setas que nos guiam a cada encruzilhada, cor esotericamente relacionada ao raio de luz de Miguel, coincidentemente a mesma que eu notara estar pintada na Igreja da Sagrada Família.
E nada melhor que um caminho para dar vazão a um chamado coletivo. Afinal, um caminho só se cria caminhando. Onde quer que haja uma vontade, haverá sempre um caminho. Se pensarmos ainda numa Vontade divina procurando nos orientar na vida, então fica fácil aceitar que Ela possa abrir um caminho coletivo, capaz de reunir os esforços de todos aqueles que de alguma forma escutaram o Seu chamado. Os caminhos ganham assim a sua egrégora, conforme vão sendo palmilhados por almas que se entregam ao exercício do perene caminhar, a cada passo marcando com pegadas a “boa estrada”, aquela por onde cada novo peregrino, um dia, ao vê-las, saberá que também pode passar.
Alexandre me deixou quando a chuva já dava trégua. Havia luz ainda, mas a noite por certo nos encontraria bem antes da pousada. O carro de apoio veio nos trazer lanternas e oferecer carona aos que não quisessem andar no escuro, mas preferimos seguir no barro. Muitos sapos no caminho, eu com um farolete preso à testa, Ana Paula caminhando descalça e Albino contando suas peripécias de jornalista, de como enfrentara a ditadura militar instalada com o golpe de 64.
Cheguei junto de Melissa à Fazenda das Posses. Enlameado, corpo úmido, aceitei a cachaça de boas-vindas e fui direto para o banho. A noite ainda rendeu histórias de saci, lobisomem e mãe-do-ouro. Também da jagunçada e das brigas entre as famílias dos séculos que demarcaram aquelas terras.
Bem cedo, na manhã seguinte, fui dos primeiros a partir em direção a São Thomé das Letras, uma das cidades mais altas de Minas, distante de mim 20 km de muita fé e subida. A dor nas costas compensava negativamente o esmero que eu tivera em arrumar a mochila. Dessa vez, eu só levava o peso necessário, conforme aprendera na peregrinação anterior. Mas as costas quase me punham a nocaute. Cheguei a pedir ao Júlio, responsável pelo carro, que procurasse para mim algum quiroprático em São Thomé, alguém que me pusesse em condições de chegar ao término do Caminho.
Como a dor retardava a marcha, fui ficando para trás. Logo, era eu o último dos sete, pesado chumbo alquímico, andando com ares densos e sombrios, distante sempre sete passos de meu ouro divinal, mal sabendo por onde começar a transformar as coisas, pedindo a Deus que, por piedade, ao menos, me explicasse a razão do porquê de eu haver escolhido(?) peregrinar de novo. Enfim, procurava manter o humor diante da perplexidade sem graça, não passava de um tolo tentando compreender até que ponto as atitudes que tomamos são realmente escolhas nossas.
O carro de apoio veio ver-me. Júlio me ofereceu o rádio-comunicador. Julguei que não era preciso. A idéia dele me chamando a cada meia-hora para saber se eu ainda estava vivo me pareceu ameaçadora para quem queria ouvir melhor o chamado do silêncio. Dispensei o carro. Para aplacar a dor, resolvi hiperventilar para criar certo formigamento corporal, e assim devo ter caminhado por quase uma hora.
O céu nublado prenunciava que a chuva da madrugada continuaria. Mas bons ventos vieram, ajudaram-me a subir, refrescavam-me do mormaço. Tão logo em chumbo bruto alcancei o alto de uma colina, de onde se podia avistar pela primeira vez São Thomé, o dia, seguindo a brisa que soprava, abriu-se ensolarado. Dali era possível vislumbrar 360º de verdes vales e montanhas; também uma enorme cratera prateada bem no centro de São Thomé, mostrando o tamanho da ganância humana, capaz de fazer sangrar uma montanha. Uma chaga ecológica digna de compaixão. A Terra escancarava na ferida aberta o profundo grau da perversidade humana, também o megalítico descaso governamental pela natureza. Mas a subida me fizera fraco. Era preciso sentar. Procurei uma pedra bem situada diante da paisagem. A hiperventilação de há pouco me trouxera percepções diferentes. Por alguns instantes senti tontura. Minha respiração, regular agora, despertava mandalas que se abriam e se fechavam à minha frente, conforme o vento balouçava as árvores. Os verdes da alfombra assumiam matizes vivos que pulsavam junto das batidas de meu coração, por sua vez, em sintonia com o respirar da Terra. Ali, sentado sobre a pedra, refletindo sobre nosso atômico parentesco, consciente de sua natureza viva, foi que chorei pela primeira vez nesse Caminho.
Instantaneamente, recebi ali aquilo que seria a primeira terça parte de minha revelação peregrina. Conforme me restabelecia de meu passageiro mal-estar, uma inquietude me tomou pelas mãos, abri meu livreto de viagem e anotei:
“Montes, vales, também pedras… são Minas”, e daí desfiei ao todo quatro versos que me foram soprados prontos, com tonicidade ajustada na sexta e décima sílabas. Logo entendi, o quarteto em decassílabos heróicos dava início a um soneto. Tenho familiaridade com eles, mas ainda que tentasse, não conseguia dar-lhe continuação. A inspiração poética, subitamente como viera, havia passado. E era inútil querer que ela retornasse. Vi-me incapaz de escrever uma só linha.
Era como se o Arcanjo Miguel tivesse me tocado sutilmente com suas asas, provocando-me para o alto, levando-me a vislumbrar a possibilidade de eu também poder voar. Nisso, uma enorme borboleta azul apresentou-se. Roçou-me a testa. Era o arauto das outras tantas que viriam. Parecia trazer com seu esplêndido vôo a certeza da presença dos anjos tutelados por Miguel pelo caminho. Anunciava ainda que estava próxima a Cachoeira das Borboletas, famosa queda d’água na região.
Refeito de meu momento paralelo, vi-me recobrado em minhas forças. Senti sede, mas o jipe estava longe, e eu dispensara o rádio. O jeito foi seguir pacientemente as flechas de Miguel e, por entre borboletas brancas e azuis cada vez mais presentes, encontrar o grupo que há horas me esperava lá na frente. Marcelo, que tem casa e sítio em São Thomé, na condição de cicerone, convidou-nos para o banho. Foi preciso descer boa distância até a Cachoeira. Lugar maravilhoso! Em verdade, são três quedas, mãe e duas filhas, lado a lado vertendo água numa bela piscina natural. O limo tornava as pedras escorregadias. Sempre tive dificuldades com altura e com lugares assim. Para o pessoal, foi questão de minutos alcançar as cachoeiras; para mim, que já quase caíra, foi preciso passar agachado em alguns pontos, meio curvado em outros, até me pôr ereto nas pedras mais largas logo adiante. Se o velho Darwin me visse ali sofrendo aquela pândega, anotaria em seu diário: “algo neste homem, herança do macaco, ainda não evoluiu”. Mas o banho compensaria o meu apuro. A cachoeira-mãe me empurrou, quase submergi debaixo dela. Entrei de novo, com mais cuidado, sob seu intenso fluxo. A trina ducha foi, sobretudo, terapêutica; recebia a melhor massagem do mundo.
O Jipe esperava pelo grupo. Levou-nos em duas viagens até a pousada São Miguel, na parte alta da cidade, um castelinho rústico, feito de pedras, de cuja torre se pode avistar o complexo montanhoso que havíamos atravessado.
O jantar artesanalmente preparado por Juninho, chef internacional, à luz de velas, rendeu esoterismo medieval à conversa. Passamos pelas sociedades secretas, pelos segredos templários e daí, foi um pulo para os enigmas das inscrições rupestres em sítios arqueológicos da região, de onde se origina o nome da cidade, incluindo a Pedra do Disco, cujos desenhos dão margens a crer que os óvnis estão milenarmente presentes por ali.
Na manhã seguinte, acordei sem dor nas costas. Valdecir, pedreiro amigo de Marcelo, responsável pela construção do castelinho, agregou-se ao grupo. Mestre em salvamento e replante de orquídeas, fez-nos sair da área urbana por trilhas ecológicas, demonstrando conhecer a medicina herbárea local. Entretidos que ficamos com sua sabedoria, quando vimos, já estávamos diante da entrada para a Cachoeira da Eubiose. Preferi não entrar na água dessa vez, afinal, eram mais 20 quilômetros até o próximo albergue, e receei que, com os pés úmidos e fechados no calçado, se formassem bolhas. Acompanhei do alto de uma pedra o banho do pessoal.
Subi de volta à estrada em companhia de Carlos, que queria saber o que significava Eubiose. O nome vem do grego, respondi, traduz-se por “vida perfeita”. Eu desconfiaria, disse-lhe, de todo aquele que se propõe a ensinar o que é viver com perfeição, mas creio seja saudável qualquer escola que se apresente como uma via de constante aperfeiçoamento. A conversa despertou interesse no rapaz e subimos filosofando em meio aos bosques, à moda peripatética de Sócrates e os antigos. Carlos sabia falar com beleza sobre a vida. Diante de um cruzamento sem sinalização, flagramo-nos sobre o tema do destino e do arbítrio. Resolvemos seguir uma borboleta azul e não erramos a saída para estrada. O sinal nos comoveu, ali chorei pela segunda vez, e de novo foi preciso tomar nota: “Eu sigo protegido desde o ninho…”, e outro quarteto se escreveu, de modo fluente, num encanto. Sei que é difícil acreditar, mas outra borboleta, ou quem sabe aquela mesma que nos indicara literalmente o caminho, veio visitar meus versos. Sim, eu tinha ali um soneto sendo escrito, mas, de novo não fui capaz de desfechar-lhe seus tercetos. Uma área de inspiração se me mantinha interdita. Não adiantava insistir. Melhor a se fazer era esperar, imaginei Miguel me dizendo: “Sim, este é um mistério tripartite, dividido em três corações; para se tê-lo por inteiro, é preciso caminhar mais um pouco”. Cada vez mais eu compreendia o drama de Alexandre, também o de Marcelo e Valdecir, contando como foi que ergueram juntos, no braço, tanto o castelo como o sítio para onde íamos. Havia sim uma razão maior pra tudo.
Seguindo pela estrada já podemos avistar no distante horizonte o Pico do Papagaio, ou Aiuruoca (Casa do Papagaio, em Tupi-Guarani), nome da cidade-meta. O trajeto até Manjarin passa à porta de algumas escolas de magia. Chegamos no meio da tarde. Cachoeira particular, piscina natural, casa modesta aconchegante, lareira e mesa de refeições em pedra. Nela, incrustada a rota francesa de peregrinação. Nosso segundo banquete à luz de velas tinha sopa de abóbora por entrada, romanticamente tomada em vieiras de barro, tudo preparado pelo chef-hospitaleiro dessas duas paradas. Em compensação, as xícaras de café eram mesmo horríveis. E só deixamos o conforto da lareira para estarmos em volta de uma fogueira, e acompanhar a partir da meia-noite o eclipse total da Lua. Espetáculo encomendado pelos Anjos, ali, somente para nós. O apagamento da Lua revelou-nos a Via Láctea e miríades de novas constelações. Sim, é possível desvelar segredos, entendi. Às vezes é preciso apagar a luz (a mente) para melhor penetrar nas ocultas profundezas luminosas. A emoção do planetário era tanta que, mesmo com o retorno da Lua Cheia, preferi dormir na rede, na varanda, sob o céu abissal, deixando banhar-me por sua cachoeira de estrelas. A cura do corpo pede a cura da alma.
Acordamos sob intensa chuva. Nas palavras de Ana Paula, num daqueles dias em que você amanhece desejando ser hospitaleiro em vez de peregrino. Mas tínhamos 24 km de barro até Cruzília. Enquanto a tempestade retardava nossa saída, Melissa recebeu um telefonema que cobrava seu retorno urgente para São Paulo. Seu irmão naquela noite fora internado e seu marido pedia sua presença no hospital. Júlio imediatamente a levou à rodoviária. Nós, ainda sete, devido à presença de Valdecir, seguimos viagem. Tive que vestir aquela capa de plástico, toda amarrotada e com certo odor. Todo cuidado era pouco para não escorregar e virar lama dos pés à cabeça. Lembrei-me de Gene Kelly e a clássica cena de Singing in the rain. E foi assim, cantando e dançando na chuva que andei feliz até que o dia outra vez se abrisse, e sua luminescência rasgasse um arco-íris entre vales e montanhas. Emocionante estar ali. De novo as borboletas azuis surgiram, eram três delas à minha volta. Nas asas de cada uma respirei dois versos, com eles se compuseram os dois tercetos que faltavam:
“Montes, vales, também pedras… são Minas
Gerais, onde Miguel fez seu caminho,
abriu no azul suas asas de carinho
em benção aos peregrinos, peregrinas…
Eu sigo protegido desde o ninho,
são três meus corações que buscam sinas,
me levam a Aiuruoca por colinas
e fazem despertar meu Ser sozinho.
Primeiro coração é o amor divino:
é graça, é o dom da vida que me é dado;
Segundo coração encontro ao lado:
Amar ao semelhante é seu destino,
Terceiro come pão e toma vinho:
são passos da missão que é meu caminho!”
Estava revelado o mistério tripartite: os três segredos guardados nos corações da Sagrada Família e que norteiam todos nós, peregrinos, sempre que, nos momentos mais difíceis da grande caminhada terrena, aceitamos entregar nosso coração aos desígnios do Pai Celeste, e seguimos confiantes pela estrada aberta pelo amor universal. Daí serem três as nossas sinas: amar a vida, graça divina que nos é dada; amar ao semelhante como se a nós mesmos o fizéssemos e; amar também nossa missão terrena, a fim de realizar direito a parte que nos cabe em toda essa Grande Obra alquímica, que é o plano da Criação divina. Embora sejam três os domínios a serem assimilados, representados por Jesus, Maria e José, o caminho da verdade e da vida é sempre um só: é pelo coração (amor) que se vai ao Pai.
Os corações da Sagrada Família guardam ainda os mistérios dolorosos, gozosos e gloriosos. Por isso é que os vemos às vezes cercados de espinhos, em vez de rosas. Um coração que ascendeu à compaixão, nunca mais ignora a dor do mundo, e só amando incondicionalmente transforma a sua dor em odor de flores, seu suor em gozo de ofício, e suas lágrimas em glória espiritual, ajudando assim a liberar as amarras que atrasam o despertar dos homens.
Imerso na sagrada simbologia, ocorreu-me também analisar o sentido dos sapos e das borboletas que cruzei pelo caminho. Dois raros exemplos de seres que sofrem mutação. Ambos nos remetem ao metafísico mistério cujo arquétipo também é trino: “vida, morte e renascimento”. Os sapos expressam alquimicamente nossas transformações noturnas, são os valores inconscientes (ocultos em meio aquático) que vêm à tona e conquistam o meio terrestre (a consciência). Já as borboletas aludem ao processo de iluminação capaz de dar asas a essa consciência. Simbolicamente, elas estão um patamar acima dos anfíbios, pois, podem abandonar a forma lagarta, seu padrão terrestre, e alcançar o vôo livre da espiritualidade.
E para abençoar com chave de ouro esta cachoeira de revelações, por sincronicidade dos anjos, uma daquelas enormes borboletas azuis surgiu mais uma vez. E me transportou na abstração de suas asas ao mais nítido entendimento: “peregrinos são Anjos-Crisálidas; mas é preciso caminhar para que recebam as suas asas”. Só mesmo caminhando a pão e vinho e cumprindo com determinação a missão terrena, é que cada um de nós inscreve com os próprios passos uma via transcendente, capaz de nos levar ao contato com as hostes elevadas, de realmente nos alçar à “experiência” de Deus. Peregrinos sofrem mutação assim: caminhando. Em determinado ponto do percurso, havendo já purgado as suas dores e visitado as suas salas mais escuras, descobrem que podem também ajudar a transmutar as grandes dores coletivas. Nessa hora, encontram espaço em suas mochilas para a compaixão e passam a carregar consigo a humanidade toda “para cima”. Nesse momento, dignos dos olhares dos anjos, quais crisálidas que se rompem, os peregrinos recebem também seu par de asas, que lhes permite desabrochar para um luminoso despertar.
Impossível passar incólume por uma peregrinação. Ainda que do ponto de vista do ego (que responde por ¾ da palavra “cego”), alguém de espírito de chumbo jure de pés juntos que de nada lhe serviu seu caminhar, a alma, em sua natural função transcendente, distante das armadilhas da mente, sabe bem qual luz está buscando, e segue confiante à espera do instante imprevisível em que sofrerá sua mutação de consciência.
Absorto em imagens, voando pelas montanhas, dessa vez fui o primeiro a chegar em Cruzília. Tal nome provém do fato de a cidade ter sido ponto de cruzamento das rotas dos antigos bandeirantes e tropeiros que desbravaram a região. Para mim, havia um sentido a mais, afinal, ali se dera minha crucial transformação nesse caminho. E nada melhor que a santíssima cruz para unir em perfeita mandala o meu simples coração humano aos outros três da divina dimensão. Só assim, religados com a fonte, é que comungamos de nossa própria essência.
Dali para frente o caminho se tornou mais leve. Usufruir daquela natureza toda em estado de presença era o mesmo que sorrir de felicidade por se perceber sereno. São Pedro era a próxima Fazenda, onde fomos recebidos com as mais simples honras peregrinas: escalda-pés, suco de couve com limão e uma branquinha da boa. A pousada Pico do Papagaio, já na última cidade, nos oferece uma vista privilegiada. Mas, sem dúvida, depois de vencer a derradeira subida, nossa maior bênção é simplesmente a do chegar! E foi assim que todos nós, cansados e fortes, sujos de lama e lavados na alma, alcançamos Mandala das Águas, no santuário ecológico do Vale do Matutu, uma pousada situada entre as imponentes montanhas do Pico do Papagaio, rica em cachoeiras, raro lugar em que a palavra extraordinário pode ser usada com toda propriedade.
Por Melissa ficamos sabendo que seu irmão, após delicada cirurgia, passava bem. Nem os médicos acreditavam em tanto sucesso. Hoje entendemos que ela, mesmo sem o saber, peregrinara pela cura dele, e ainda teve a benção de levar consigo a proteção de uma legião de anjos lá para o hospital. Cabe aqui o exemplo do quanto nossa alma sabe que o ego desconhece.
Quanto aos meus três desejos – e convido todos os peregrinos do Caminho dos Anjos a fazê-los sempre à porta da Sagrada Família, após as orações preparatórias – ora, são segredos meus, não quero revelá-los; posso garantir que já estão se realizando, mas como me disse Miguel, “É preciso peregrinar mais um pouco…”.
* Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
** Ana Paula Brasil é artista plástica, fotógrafa e peregrina: peregrinapaula@hotmail.com
obs: exceção feita à foto da borboleta, e àquela de minha autoria, todas as demais são arte fotográfica de Ana Paula Brasil
Serviço:
Caminho dos Anjos: para maiores informações quanto ao atual roteiro de peregrinação, cidades incluídas, datas de saídas, distâncias, hospedagens etc… entre em contato com: (11) 30516854 [com Erisvaldo] – ou (11) 7227-2725 [com Alexandre].
Lembro como se fosse hj… Primeiro pesquisando coisas sobre minha conduta, minha história interior, quando me deparei com este site e com este homem chamado Paulo Urban.
“Nossa! Caminho dos Anjos”, estava escrito, não deixei de ver uma foto sequer e me apaixonei por cada canto registrado de sua peregrinação. Foi daí que veio o meu desejo de peregrinar naquele lugar; fiz milhares de planos, procurei informações em tudo que é canto, perturbei dona Madalena e seu Alexandre sobre tudo no caminho. Passei quase dois anos planejando fazer o caminho e marquei minha peregrinação para outubro, que julguei fosse a melhor época para andar por estas localidades de Minas.
Amigos, gostei muito do site e das dicas sobre o Caminho dos Anjos.
Gostaria de pegar algumas informações como qual a melhor época pra fazer o caminho com menos chuvas ou menos frio? Posso fazer o caminho acampando? é ariscado fazer sozinho?
Já fiz o caminho da Luz e o Caminho da Fé, saindo de Tambaú.
Obrigado.
Paz e a Bem
Calixto
Calixto, caro peregrino:
Escrevemos este tempo já faz tempo, o Caminho dos Anjos ainda começava suas atividades, era o ano 2008, quando fiz este Caminho, e publicamos este texto neste site em 2010. Desde então, muita coisa já mudou, e para melhor, com ajustes de rota e seus respectivos albergues para hospedagem. Melhor a se fazer para sanar suas dúvidas é conversar diretamente com os administradores do Caminho dos Anjos, algo que você pode fazer pelo site oficial deste Caminho, cujo endereço é:
http://www.caminhodosanjos.org
Grande abraço,
Paulo Urban
Obrigado Paulo.
Pretendo fazer o C.A. em 2016, vou pegar as dicas no site.
Paz e Bem
Calixto
2013. 6 anos desde minha última publicação aqui nesse post e da minha viagem. Lembro-me que o transporte de ônibus e avião deram-me passagem sincrônica (abriram caminho): os horários cumpriam exatamente o percurso, com no máximo, uma hora de diferença entre as passagens. Meu Deus, que lembranças…
“Em determinado ponto do percurso, havendo já purgado as suas dores e visitado as suas salas mais escuras, descobrem que podem também ajudar a transmutar as grandes dores coletivas. Nessa hora, encontram espaço em suas mochilas para a compaixão e passam a carregar consigo a humanidade toda ‘para cima'” (Paulo Urban).
Descobri, no caminho, que morro de medo de vacas e bois. A trilha recheou o caminho desses seres (rs). A primeira vez que tive que encarar: atravessar a estrada em que tinha vacas do meu lado direito e do meu lado esquerdo! Eu fugi, subi em uma colina, comecei a “berrar” (chorar), por misericórdia divina o celular deu “um pontinho” de sinal. Eu liguei para Rodolfo (o rapaz que trabalha no albergue de Passa Quatro), dizendo que queria que ele fosse me buscar porque eu estava sofrendo (não consigo me lembrar disso sem rir). Daí Rodolfo disse para mim que eu não desistiria, que eu era a primeira garota de 17 anos peregrinando sozinha, tinha um motivo para isso e que se eu desistisse eu não descobriria. Eu continuei “berrando” ao telefone, nada parecia consolar o meu desespero. Daí quando eu vi que ele não desistiria de me convencer a continuar, perguntei se ele poderia ficar ao telefone em quanto eu atravessava o “corredor da morte” (também não consigo lembrar disso sem rir). Ele aceitou. No final da travessia eu percebi que o celular estava sem sinal e eu não tinha sido atacada por nenhum gado. Senti algo diferente, mas optei por não me vangloriar por ainda estar viva.
O segundo encontro com as vacas e bois: eu senti o chão tremer, eu estava com a mochila super pesada nas costas e parece que quando a gente sente medo os nosso sentidos ficam apurados! Quando eu percebo umas cabeças de gado, eu largo a mochila no chão, pulo a cerca na “velocidade da luz”(na época eu estava com 65 kg e sedentária) e subo em uma árvore de altura mediana, começo a berrar mais uma vez. As vacas, que seguiam seu caminho na tranquilidade, começaram a parar bem na frente da cerca que eu tinha pulado, começaram a cheirar a minha mochila. Quanto mais vacas se aproximavam da cerca, mais eu berrava. A mulher que “tangia” o gado, passou, olhou para mim e parecia não entender o que tinha acontecido, ela passou na normalidade, não esboçou reação. Quando o gado passou eu desci da árvore, tentei sair da cerca (muito mais difícil depois que a adrenalina já se foi), peguei minha mochila e sentei no chão. Eu estava transtornada, minhas pernas tremiam e eu não conseguia me movimentar sem tremer todo o meu corpo. Pedi a Deus que me ajudasse porque de uma coisa eu já sabia: eu não ia desistir. Meia hora depois um homem/senhor chamado Mário passou, me viu e perguntou se estava tudo bem. Eu disse, obviamente que não, expliquei a ele a situação e ele começou a gargalhar como se eu tivesse contado uma piada. Meu Deus, que vexame, eu ali depurando tudo e ele rindo! Segui viagem na companhia de seu Mário, falávamos do caminho e das nossas inclinações. Foi apenas em um caminho. Apesar de termos nos encontrado naquele momento, já que têm caminhos que se cruzam, o caminho que ele estava fazendo era outro. Não teve jeito, depois de terminado o percurso, dormido, o dia posterior seria, novamente, sozinha.
Encontros posteriores com vacas e bois: tive momentos de ansiedade por saber que encontraria mais gado, depois passei a ter medo porque tinha certeza de que encontraria. Foi tanto gado nesse meu caminho (meu Deus, quanto gado!), que o medo e a ansiedade deram lugar a um pouco de ousadia e coragem (pelo menos era isso que eu desejava kk). Bom, quando eu cheguei no último dia de peregrinação, começou a chover, eu senti que era uma benção. A mesma chuva que dava de alimento ao solo, as plantas, a vida, estava ali me alimentando, eu senti que algo me dizia: você foi batizada.
Paulo, se eu fosse traduzir o meu sentimento por você: “Aqui está a pedra insignificante, de preço vil, desprezada pelos ignorantes, e mais amada pelos que a (re)conhecem” (retirado do texto “O Santo Graal e a Pedra Filosofal).