LENDAS DO SOBRENATURAL
Texto de Paulo Urban
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
O sobrenatural está universalmente arraigado nas tradições orais de todas as culturas desde os primórdios da humanidade, sendo ingrediente presente ao longo das eras, não obstante a época ou área geográfica sobre as quais focalizemos nosso olhar.
Não há folclore genuíno que não esteja essencialmente marcado por histórias e lendas de caráter extraordinário, que dizem respeito ao mundo transcendente ou sobre-humano, capazes de despertar em nosso psiquismo um estado de excitação diante do insólito inaudito.
Tais histórias, passadas a fio pelas gerações, transmitem uma sabedoria guardada na simplicidade, contida nas relações interpessoais cotidianas, capaz de nos revelar importantes lições a serem assimiladas, sempre úteis para o exercício da vida. Desde que estejamos dispostos a aproveitar intensamente o sabor de nossos dias, muito ganhamos quando abrimos nossos corações para ouvir sem preconceitos tais relatos fantásticos, retratos detalhados de uma mística coletiva que, independentemente de nossas crenças pessoais (ou mesmo na falta delas), cumpre o papel de nos levar a refletir acerca dos mistérios que desafiam nossa comum compreensão dos fatos.
Neste particular, merece especial atenção Lindolfo Gomes (1875-1953), um dos maiores folcloristas brasileiros, natural de Guaratinguetá (SP). Gomes dedicou-se especialmente às letras, tornando-se respeitado escritor, além de jornalista e professor. Membro da Academia Brasileira de Filologia, da Academia Carioca de Letras e da Academia Mineira de Letras, o estudioso paulista publicou várias obras, dentre as quais, na área do folclore, podemos citar Folclore e Tradições do Brasil (1915), Contos Populares (1918) e Nihil Novi…(1927).
A valioso obra de 1918, editada pela Melhoramentos, ainda que composta por “causos”, fábulas, anedotas, cantigas populares e lendas coligidos exclusivamente no interior de Minas Gerais, recebeu em sua 3a edição o predicado de Contos Populares Brasileiros, posto que a coletânea folclórica encontra versões por todo território nacional, incluindo ainda variações provenientes de Portugal, que aqui chegaram por força da colonização.
Possuo um exemplar desta raridade literária, com ilustrações curiosíssimas e acrescida de um glossário para melhor compreensão das locuções regionalistas populares, preocupação pedagógica de Lindolfo Gomes. O livro, hoje com suas páginas enodoadas pelo tempo, recebi-o das mãos de meu pai, de quem sempre ouvi tais lendas, regularmente narradas durante minha infância. Meu pai, por sua vez, recebera tal exemplar também quando criança das mãos de um tio, padre Paulo, cuja influência sobre sua formação foi tanta que dele herdei meu nome.
A obra é significativa, escrita numa época em que o folclore, como disciplina, era ainda incipiente. Desde o trabalho pioneiro do folclorista sergipano Sílvio Romero (1851-1914), nenhum outro esforço havia sido feito de modo a organizar metodologicamente o assunto. Para tanto, Lindolfo Gomes propôs classificar as lendas e histórias populares sob os “ciclos” de Pedro Malazarte, do Preguiçoso, do Diabo, do Coelho e da Onça, de Pai João, ciclo de lendas sobre a formação das raças etc…
Detenhamo-nos sobre algumas dessas lendas, aqui adaptadas e resumidas, cujo principal caráter é o de expor nossas disseminadas crenças no sobrenatural, marca indelevelmente presente no imaginário popular brasileiro.
A Lavadeira Assombrada
(colhida em Lima Duarte)
Conta-se que uma lavadeira muito madrugadora, certa noite, acordou sobressaltada, vendo em seu quarto grande claridade. Não percebendo que se tratava de alta lua cheia, imaginou que um novo dia já estivesse amanhecendo e pôs à cabeça sua bacia cheia de roupas para ir às pressas ao rio lavá-las. Ao passar em frente da igreja, porém, notou que muitos nela entravam, e entendeu tratar-se da missa d’alva. Como de costume, deixou a bacia à porta da Igreja e entrou para fazer suas preces. Na igreja, repleta de devotos, estranhamente todos trajavam roupas brancas e pareciam-lhe muito pálidos. A mulher começou então a sentir um frio inexplicável que se estendeu até o fim da missa. Terminada a celebração, ao tentar levantar sua bacia, percebeu-a pesada além da conta, o que a obrigou pedir aos fiéis que saíam para que a ajudassem levantá-la do chão. O primeiro interpelado escusou-se dizendo: “Infelizmente senhora, não posso ajudá-la, pois morri faz alguns anos de tuberculose”. Assustada, a lavadeira pediu ajuda a uma segunda pessoa que lhe respondeu: “Não posso ajudá-la, morri há poucos meses de pneumonia”; e de modo semelhante desculpou-se com ela uma terceira moça que dali saía.
Foi quando o sino da igreja bateu somente duas vezes, e ela compreendeu que houvera assistido, na madrugada, à missa das almas penadas. Saiu a correr desesperada e não levou muito tempo para que definhasse até que veio a se juntar aos mortos.
A Moça e a Vela
(colhida em São João del Rei)
Numa época em que luz elétrica não havia, uma moça tinha por hábito ficar postada à janela de seu quarto, que dava vista ao cemitério da cidade, olhando para a rua, até altas horas da madrugada. Sua mãe a repreendia todas as noites: “Minha filha, quem fica à toa na janela acaba vendo o que não quer!”; ao que a jovem retrucava que nada tinha de melhor para fazer e que ela, sofrendo de insônia, podia desse modo ao menos observar algum movimento na rua.
Certa noite, lá estava a teimosa admirando a calmaria noturna quando ouviu bater a meia-noite. Nisso aproximou-se de sua janela um rapaz, vestido de branco, como que surgido do nada e trazendo uma vela acesa na mão. Com voz grave e soturna, pediu à moça o obséquio de guardar a vela até que voltasse de seu passeio. A jovem, tomada de surpresa, tão distraída estava que aceitou fazer-lhe o favor sem sequer pensar muito na estranheza do pedido. Voltou-se para dentro de seu quarto e pôs a vela sobre o criado-mudo, ao lado de sua cama. Foi somente às duas da madrugada, hora em que as almas penadas se recolhem, quando ela ainda apreciava a noite, que lhe reapareceu o estranho moço, de maneira tão súbita quanto antes, pedindo-lhe de volta sua vela. A jovem virou-se então para apanhá-la, quando deu enorme grito de horror e de espanto, pois sobre a mesinha nenhuma vela mais havia, mas deitado em seu leito estava um esqueleto inteiro, que se ergueu, fez algumas evoluções no ar e saiu voando pela janela em direção ao cemitério. Ao mesmo tempo, o misterioso moço desaparecera tão inexplicavelmente quanto havia ali surgido. Desse dia em diante, a pobre jovem ficou pasma e cretina, rindo e chorando à toa, servindo sua sina como exemplo a todas as demais filhas desobedientes do lugar em que morava.
A Caveira Vingativa
(colhida em Maria da Fé)
Havia um homem desrespeitoso que de tudo fazia escárnio ou olhava com ar de mofa, e que se julgava o homem mais corajoso do mundo. Certa vez, explorando uma mata virgem, deu de frente com uma caveira pendurada em uma árvore, com o restante do esqueleto jazendo ao chão.
“Que fruta será esta?”, desdenhou ele, com voz de ironia. E retirando a cabeça do galho em que estava presa, passou a examinar seus dentes grandes à mostra, e parecendo-lhe que a peça estivesse a rir à toa, o homem desatou numa rasgada gargalhada. Atirou em seguida o crânio ao chão e tripudiou: “Óh, amiga, ou amigo, quando quiser apareça lá em casa pra uma visitinha, venha jantar comigo na noite de finados!”
Para a referida data, o moço ainda convidou onze de seus melhores amigos, e sentou-se à cabeceira da mesa para cear com eles, deixando, entretanto um 13o lugar vago na extremidade oposta da mesa, sem sequer mencionar aos amigos seu insolente desafio. Todos já imaginavam que o lugar vazio se destinasse a algum conviva que por qualquer motivo não pôde ali comparecer, quando, ao soar da doze horas no carrilhão, ouviu-se uma pancada forte no umbral do casarão. Engolindo em seco seu ar de abuso e irreverência, o malfadado anfitrião foi ter à porta e, para seu redobrado espanto, deu de cara com a caveira que antes depreciara, a qual reconheceu pelos dentes grandes. O homem empalideceu! O esqueleto foi logo entrando e se sentou à mesa, serviu-se de vinho tinto e levantando o cálice, brindou: “Àquele que antes dizia não ter medo de nada e que hoje irá acompanhar-me em minha volta a minha casa!” Diante de inaudita cena, os doze convidados, aterrorizados, viram aquele que tanto se gabava de sua coragem, desabar ao chão, desfalecido. Tão logo o ósseo espectro visitante deixou a sala, acorreram acudir o anfitrião, mas constataram que ele estava de fato morto.
O Monge da Serra da Saudade
(Serra situada entre Juiz de Fora e Lima Duarte)
Há mais de dois séculos, um monge de longas barbas brancas, trajando um maltrapilho hábito e portando apenas seu cajado e sua moringa d’água, peregrinava pela região pedindo esmolas com as quais ele sobrevivia, dando boa parte do que recebia aos pobres miseráveis. Como tinha pouso certo numa gruta no alto da serra, volta e meia era visto num determinado ponto, oficiando sua missa num altar que improvisava sobre as pedras, todo enfeitado de flores. Logo que o ouviam celebrando, acorria gente de toda a região, e não havia quem não lhe desse fama de santo, posto que curava os enfermos com uma água misteriosa que brotava de seu altar, do qual exalava extraordinário perfume.
Um dia desapareceu, sem explicação alguma, o monge andarilho. Soube-se mais tarde que um caçador estrangeiro e bruto penetrara na serra e, tomando o vulto do santo que andava solitário pela noite por alguma fera, nele atirou com seu trabuco, matando-o. Os milagres, entretanto, não cessaram. E a fonte que minava de seu altar continua até hoje brotando sobre uma bacia de granito que se mantém sempre cheia, sem, contudo, transbordar; também sem revelar por onde encontra seu natural escoadouro.
Do monge, sabe-se que ainda é visto nas madrugadas, quando aparece no alto da serra, diante de um altar que à sua frente surge de improviso, sobre o qual celebra seus cantos sacros e oficia sua missa. Um anjo, ao seu lado, serve-lhe de sacristão e um sino que ninguém nunca viu sempre repica, fazendo com que muitos viajantes noturnos restem para sempre impressionados com o encanto desse mistério.
E transcrevo aqui o nostálgico comentário que Lindolfo Gomes nos faz dessa narrativa: “…trata-se de uma lenda simples, mas, ao mesmo tempo tocante. Ali, em meio da estrada, por um cair de tarde doirada e silenciosa, deixei-me ao lado do camarada, que me narrou esta lenda, contemplando a serra na invocação da saudade de seu monge tradicional enquanto o céu se acendia de estrelas rutilantes, como um altar em festa… (…) esta lenda, até onde pode ser verdadeira, não é senão vestígio tradicional de outras mais antigas e semelhantes que vieram rastreando a alma do povo, desde os tempos coloniais em que os catequistas povoavam os sertões, e percorriam as estradas em caridosas peregrinações, civilizando o índio e socorrendo a indigência, fundando hospitais e recolhimentos. Assim o fazia o famoso santo irmão Moreira, fundador da Santa Casa de São João del Rei, e cuja lenda tanta ligação apresenta em seus traços primordiais, com a desse monge que continua do alto da serra a oficiar para as almas simples e ingênuas, cujos olhos habituaram-se a ver o que a imaginação lhes pinta ou lhes sugere.”
Tocado pela singeleza desses relatos, também pelo aspecto sobrenatural que apontam, que nos leva a pensar nos estados transcendentes à realidade comum, sinto que somos todos herdeiros de uma sabedoria oral que merece estar presente na alma dos que nos sucedem. Um dito popular nos ensina que em verdade não herdamos o mundo de nossos pais, senão o tomamos emprestado de nossos filhos. Por conta dessa lição faço questão de manter viva a tradição brasileira (também a herança literária de família) e conto regularmente à minha filha de 6 anos essas histórias todas, e outras tantas que envolvem o saci, a cuca, a mula-sem-cabeça, o caipora, o curupira e outros seres fantásticos. E já pude vê-la repassando-as a seus amiguinhos de escola, que a escutavam com olhinhos arregalados e vivo interesse.
O fato é que, independentemente de raças, credos ou classes sociais, todos somos populares, visto que estamos imersos em valores que são reflexos de nossas principais raízes culturais. Perder a identidade com aquilo que nos é próprio para em troca aceitarmos valores estrangeiros que nos são impostos pela mídia é atitude pouco saudável; algo como recusar nossa essência natural para vivermos na artificialidade sem sentido do folclore impróprio.
Por isso considero especialmente o saci um emblema nacional, entidade mais genuína para a nossa realidade que qualquer gnomo irlandês, e mais verdadeira que todo o malfadado halloween, grotescamente importado de uma cultura decadente que nos invade pela sala de TV com a mesma arrogância com que explode bombas em países que pensam de modo muito diferente aos padrões ocidentais de consumo. Infelizmente, a cultura do halloween vem se fortalecendo ano a ano em função do discurso político dominante somado à falta de uma boa auto-estima de um povo brasileiro que, por ter seus inigualáveis valores, jamais precisaria ser subserviente aos interesses exteriores, principalmente quando estes não são sequer honestos.
Melhor pensarmos seriamente acerca de nossas autênticas tradições. Cultivar e manter vivo nosso folclore vale tanto como respeitar a nossa língua. Não imagino que sejamos melhores que ninguém, mas certamente reunimos valores que, por serem próprios, são inequivocamente soberanos em relação às culturas que vêm de fora. Se não cuidarmos primeiramente do que é nosso, seja a cultura popular ou a Amazônia, seja o amor pela língua ou a rede de satélites artificiais que nos cobre, haverá quem queira de modo mentiroso e vestindo fantasia de duende cantar de galo aqui em nossa casa. Viva o Saci, antes que seja tarde!
Amigo, e tô desconfiado que é esse danado que está consumindo as mangas aqui em casa porque toda manhã são várias chupadas sem explicação caídas no entorno do pé de manga. Por acaso você sabe se manga está no cardápio dos sacis? Abraço das montanhas.
“Lendas do Sobrenatural”, além de trazer histórias arrepiantes, nos possibilita momentos de profunda reflexão sobre PRINCÍPIOS e nossa responsabilidade atual de discernimento e CONDUTA. De forma singela nos deixa respirar o encontro entre gerações, nesse contar historia para os filhos! Esse texto é um mergulho no respeito das relações humanas e na arte de SER brasileiro! Viva nosso folclore! Viva o Saci! Gratidão!