O IMPORTANTE É SER PEQUENO
Texto de Paulo Urban
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
Dentre os gigantes, tome cuidado com os pequenos, pois são estes que mais podem crescer. Nada há de errado num crescimento que não seja desordenado ou mero resultado de inflação egóica. O verdadeiro crescimento é um processo sempre evolutivo e mesmo os gigantes podem crescer harmonicamente, desde que o façam alicerçados em sua simplicidade. A humanidade é rica em gigantes.
Gandhi (1869-1948), por exemplo, foi um deles. Mahatma, conforme o sábio era chamado por seu povo em toda a Índia, significa “grande alma”, e a gigantesca espiritualidade de Gandhi era fato evidente, própria dos raros que primam preservar os princípios de justiça e dignidade sem ferir a paz sob qualquer pretexto.
Napoleão Bonaparte (1769-1821) foi também outro gigante. Tinha, entretanto, somente 1,58m de altura. Certa feita, quando depreciado por um rei inimigo que o interpelou pelo abjeto adjetivo de “nanico”, respondeu que um homem não se mede por sua estatura, senão até onde consegue levar o seu destino”. Diferentemente de Gandhi, entretanto, o imperador de França perdeu-se em seus desígnios e, vitimado por um ego leonino, deixou-se guiar por sua parte instintiva e bestial, metendo seu focinho (napus em latim significa “nabo”; também alusivo a “nariz”) nos buracos desconhecidos da própria vaidade, razão pela qual acabou sendo devorado por sua ambição. Se ao longo dos treze anos em que se manteve casado com Josèphine, tivesse ouvido ao menos meia dúzia de conselhos dela, não teria se dado tão mal. Napoleão perdeu-se, enfim, no enredo de sua própria máxima.
Adolf Hitler (1889-1945), outro estranho espécime atirado à conquista do mundo, não entra absolutamente nesse grupo de gigantes. Primeiro porque seu tamanho era simplesmente mediano, o que jamais faria dele nem um grande nem um pequeno portento, mas, antes de tudo, porque o que não lhe prestava essencialmente era sua qualidade humana. Exemplo de alma patológica, sem grandeza anímica de qualquer espécie, Hitler era dotado de uma personalidade monstruosa, cruel e tirânica, em suma um psicopata cujos ideais megalomaníacos eram de todo inversamente proporcionais à sua infinita baixeza de espírito.
Falemos, pois, dos verdadeiros pequenos gigantes, daqueles que devotaram suas vidas ao bem comum da humanidade. Entre os brasileiros encontramos um dos maiores exemplos desse gênero: Alberto Santos Dumont (1873-1932). Do alto de seus 157 centímetros (ele usava até saltos mais altos para compensar sua estatura), nosso obstinado inventor alçou vôo livre por meios próprios, e soube levar galhardamente a humanidade inteira em suas asas a alturas nem sonhadas, desfraldando aos homens o futuro de uma apaixonante nova era, marcada por inimagináveis conquistas tecnológicas e espaciais. Talvez esteja aí o espécime que melhor represente o quanto pode nos surpreender um pequeno gigante, quando se deixa conduzir por ideais elevados e nobres sentimentos em relação a seu mundo e sua época.
Albert Einstein (1879-1955), igualmente, seria um cientista simplesmente mediano se avaliado em termos de escala métrica, mas é reconhecido como um dos maiores gênios da humanidade, cuja mente altruísta, pacifista e luminar se transformou em verdadeiro farol de Alexandria para a ciência tecnológica e toda a cosmologia do século XX. Como os gigantes entre si se reconhecem, considerava Gandhi o maior homem de sua época. Com sua Teoria da Relatividade, um breve manuscrito publicado primeiramente em junho de 1905 na revista científica alemã Annalen der Physik, provocou uma reviravolta nas concepções mais acirradas que os cientistas tinham do Universo. Contrapondo-se à doutrina newtoniana que entende que todos os corpos tendem à inércia, ao repouso, Einstein declarou que tudo na realidade que nos cerca está em perene movimento e que todas as trajetórias, direções ou deslocamentos são meramente relativos às posições de seus respectivos observadores; ademais, as velocidades dos diferentes corpos são ainda relativas entre si, exceção feita à velocidade constante da luz. Da nova teoria depreendem-se conceitos estonteantes que nos ensinam que o espaço é curvo, o que, por conseguinte, nos leva a constatar que a menor distância entre dois pontos nem sempre é uma reta. Estabelece-se ainda que não só o espaço, mas também o tempo é relativo, não podendo este sequer ser medido de mesmo modo em toda a parte. Basta lembrar que cada planeta possui seu sistema cronométrico em relação à posição que ocupa dentro de seu sistema estelar, e que um dia da Terra nada mais é do que um interregno demarcado por condições absolutamente singulares, que não servem para medir o tempo virtualmente existente em quaisquer outros lugares. A propósito, a imagem que fazemos das estrelas nos informam de sua aparência há tantos anos-luz quantos os decorridos para que sua luminosidade vença a distância que dela nos separa, de modo que, por exemplo, se alfa-centaurii, estrela mais próxima da Terra (excetuando-se o Sol), situada a 4,3 anos-luz de distância, explodisse, só veríamos o fenômeno ocorrer no firmamento daqui a pouco mais de quatro anos. Ora, indo às últimas conseqüências, passado, presente e futuro para Einstein são condições que nos prendem à nossa tridimensionalidade ilusória, e que, se fosse possível a um homem viajar em velocidade superior a da luz, este faria o tempo retroceder e iria ao encontro de seu passado, podendo paradoxalmente experimentar os efeitos antes das causas, além de que entenderia ser tão lógico viajar do amanhã para o ontem como naturalmente podemos nos deslocar da cidade onde estamos para outra qualquer.
Uma vez atestada a relatividade das verdades, cientes de que tudo nesse mundo em que vivemos é impermanente e relativo, e em pertinência à tese desse texto, fica mais simples compreender como foi que Davi, o quarto e menor dos filhos de Isaí, um garoto de seus quatorze anos e peito desnudo, derrotou o temível Golias, experiente guerreiro filisteu de seis côvados e um palmo de altura, armado até os dentes, com espada, lança e escudo, trajando capacete e couraça escameada que por si só pesava 55 quilos. Golias tomou a iniciativa do combate e, com certo desprezo, partiu para cima do rapazote. Contrariando todas as probabilidades daquilo que se espera de um confronto entre um pequenino e um gigante, Davi, correndo dele, pôs a mão no alforje, de onde tirou uma funda e uma pedra, e girando-a atingiu em cheio a cabeça de seu oponente, abrindo-lhe a testa. Golias tombou pra trás atordoado, e o menino, tirando da bainha do brutamontes sua própria espada, cortou-lhe de um só golpe a cabeça.
Rui Barbosa (1849-1923), de 1,58m, jurista e jornalista, é outro dos pequenos gigantes que deve ser lembrado. O baiano tornou-se espécie de herói nacional ao defender em 1907 a igualdade jurídica das nações na II Conferência da Paz de Haia, Holanda. Convocada pelo czar da Rússia, a Conferência reunia delegados das grandes potências mundiais, países atirados à corrida industrial e que mantinham entre si uma inconsistente e delicada relação de “paz armada”. Não abrindo mão dos princípios de soberania nacional diante de propostas trazidas pelos delegados europeus que pretendiam trocar vantagens econômicas hipócritas por apoio diplomático a seus propósitos imperialistas, Rui Barbosa enfrentou com coragem as figuras mais prestigiosas do conclave e fez valer os verdadeiros ideais de paz que davam nome e sentido àquele encontro. Diante de admoestações e argüições de toda espécie, respondia fluentemente às “vacas sagradas” do congresso nos idiomas nativos de seus interlocutores valendo-se ora do francês, ou do inglês, do espanhol, do alemão, do italiano, também do grego e do latim conforme fazia citações e segundo lhe chegavam as perguntas. Deixou todos os presentes boquiabertos; não houve como pudessem despercebê-lo e teve seu nome incluído entre os sete sábios de Haia.
Fernando Pessoa (1888–1935) talvez seja o maior dentre todos os gigantes da literatura universal, haja vista seu sui generis desdobrar-se em tantos outros grandes nomes da arte poética, que fizeram transbordar sua personalidade principalmente por meio da pena de seus quatro heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, além de Fernando Pessoa ele próprio. Os três últimos, por sinal, todos discípulos confessos do grande mestre Caeiro, alteridade egóica que era melhor poeta por estar humildemente aberto à gigantesca experiência da vida. Enfim, Fernando Pessoa individuou sua alma pelos quatro elementos; fez de si mesmo uma completa e portentosa literatura, cuja genialidade soube explorar com profunda riqueza e maior homogeneidade possível toda a heterogênea gama de expressão e sentimentos da natureza humana. O homem que dizia que a verdade se veste de paradoxos expressou assim, em diferentes passagens, o colossal sublime de seus anseios: Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade. (…) Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. (…) Sê plural, como o Universo. (…) Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam mais luz às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens. (…) E, traduzindo a consciência que tinha de sua própria missão, declarou: Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu (…) reentrei de vez, (…) na posse plena do meu Gênio e na divina consciência de minha Missão. (…) Atitude por atitude, a mais nobre, a mais alta,e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou. (…) A superioridade não se mascara de palhaço, é de renúncia e de silêncio que ela se reveste. Desnecessário dizer que o imponderável da poesia pessoana agradaria sobretudo à (meta)física de Einstein, e que essas citações têm a grandeza de nos insinuar a existência de uma dimensão transcendente, da qual comungava a alma do poeta português.
Já que estamos tangenciando o campo sutil, batendo às portas da espiritualidade, citemos Saulo de Tarso, que de perseguidor ferrenho dos cristãos passou a ser um dos principais apóstolos do Cristo, responsável pela sobrevivência, estruturação e fortalecimento do cristianismo numa época historicamente adversa. Saulo teve sua experiência transcendente por volta do ano 34-35 d.C. na estrada para Damasco, Síria, para onde se dirigia munido de cartas judiciárias que o autorizavam a prender cristãos fora da Palestina. Saulo seguia todo imponente em seu cavalo quando “…aconteceu que, ao aproximar-se de Damasco, subitamente o cercou uma luz vinda do céu. E caindo por terra ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, por que tu me persegues?’ E ele disse: ‘Quem és tu?‘; e (ele) a voz lhe respondeu: ‘Sou Jesus, aquele a quem persegues”. (Atos, 9, 3-5). Bem, o que se deu então foi que Saulo caiu do cavalo e tremeu diante da aparição. Os que o acompanhavam igualmente se atemorizaram, pois ouviam a voz mas nada viam. A luminosidade deixou cego Saulo por três dias, e seus olhos só voltaram a enxergar depois que deles se desprenderam escamas, devido à imposição de mãos que o curador Ananias lhe prestou. Ele vislumbrara o estado transcendente e quase morrera fulminado por sua luz. Transformado pela clarividência crística, tangenciara a dimensão de sua verdadeira altura ao se dar conta da realidade celestial que existia muito acima de seu mundo cotidiano. Desde então, mudou o curso de sua vida, tornou-se missionário e dedicou seu coração e sua inteligência à evolução da consciência humana, que ele julgava só fosse viável através dos soberanos canais da fé, da esperança e, sobretudo, pela experiência do amor, conforme mais tarde dela trataria em sua primeira epístola aos Corínthios (I Cor, 13, 1-13). Mas para que se deixasse transmutar por algo tão arrebatador, fora preciso que antes caísse do desembestado cavalo de sua arrogância; finalmente, com seu ego ao rés do chão aprendeu concretamente que a dimensão espiritual nos iguala a todos em nossas condições humanas, que ninguém é melhor que ninguém. E Saulo, para reiterar a transformação sofrida, houve por bem alterar seu nome de origem hebraica (Saul) para outro de raiz latina que lhe fosse consoante: e escolheu Paulo, que se traduz por “o pequeno”, a designar que um dos mais brilhantes gigantes que a humanidade conheceu preferiu manter-se humilde diante de Deus.
Poderíamos citar outros avatares, mestres espirituais em diversas religiões que fazem jus à altura de Paulo de Tarso. Entretanto, não percamos o critério colocando Jesus entre os gigantes, pois ainda que este tenha vindo ao mundo dotado de uma estatura razoavelmente alta, 1,82m (assim nos atesta o Sudário), seria um erro querer encontrar referência de tamanho entre os homens a fim de comparar um ser cuja natureza, essencialmente, é divina.
A propósito, os gigantes nunca foram deuses. Jamais virão a sê-lo. Mitologicamente, são seres descomunais gerados por Géia, com a incumbência de vingarem os seus filhos Titãs, que haviam sido atirados por Zeus para sempre nas malditas profundezas do Tártaro. As mitografias divergem entre si, mas é consenso da maioria que os gigantes fossem treze: Alcioneu, Porfírio, Efialtes, Eurito, Clício, Mimas, Encélado, Palas, Polibotes, Hipólito, Grátion, Ágrio e Toas. Seres ctônicos, os gigantes representam os instintos mais primitivos que trazemos desde o tempo em que o caos desafiava a ordem, e se fazem perceber por forças telúricas portentosas de destruição como os terremotos, maremotos, furacões, etc… Embora de origem divina, os gigantes são seres mortais, ainda que seja extremamente difícil derrotá-los. De espessa cabeleira, barbudos e hirsutos, trazendo preso às pernas cachos e cachos de serpentes, os gigantes logo que surgem começam a atirar árvores em chamas pelo céu e a fazer chover rochedos por todos os lados, em franco ataque de destruição desordenada. Inicialmente, Zeus passa a enfrentá-los com seus raios, e Palas Atena vem ajudá-lo na tarefa, lutando com a lança e a égide, mas, diante da intrepidez da dupla, os gigantes resistem furiosamente. Outros deuses olímpicos engrossam o combate, mas os gigantes continuam levando vantagem e causando convulsivas desgraças por todo o planeta. Consultando o oráculo os deuses descobrem que só poderiam derrotar esses monstros se o fizessem auxiliados sempre por um mortal. E é assim que Zeus fulmina Porfírio quando este estava prestes a violentar sua esposa Hera, mas requer de Héracles (antes que o herói se imortalizasse) que o abata definitivamente no solo. Héracles ajuda ainda Atena a matar Alcioneu, levando seu corpo moribundo para expirar longe de Palene, região em que o gigante nascera, posto que em contato com o solo de origem a bruta besta recobrava suas forças. É Héracles também quem fere Efialtes mortalmente, cravando uma flecha em seu olho esquerdo, após Apolo ter perfurado com outra o olho direito do inimigo. Dioniso derrota Eurito, auxiliado pelos sátiros; Hermes, Posêidon, Hefesto, Ártemis, Hécate e as Moiras acabam por exterminar os outros todos, sempre em ato conjugado com seres humanos ou mortais, a quem os deuses se vêem obrigados a deixar que dêem o derradeiro golpe de misericórdia.
Nisso está implícito um conceito nuclear: Deus tem necessidade do homem. Embora seja a vida resultado de um ato de Criação, ela, a vida, requer da criatura sempre um ato consciente em prol de sua evolução perene, e isso se faz através do auto-aperfeiçoamento humano, cujo caminho não é outro senão o da espiritualização crescente. Isto é, para lidar com seus aspectos irracionais, com seus instintos intempestivos, também para romper padrões de heranças neuróticas ancestrais, é preciso que o homem se comprometa arduamente com sua vida e se entregue o mais humanamente possível à missão de conscientemente lutar contra forças regressivas e involutivas que nos são imanentes. Ou seja, não devemos esperar que tudo nos caia do alto, que os deuses estejam sempre realizando no plano cósmico aquilo que estritamente é nossa obrigação. O arquétipo presente no mito dos gigantes pede como compensação o heroísmo humano, é um convite para que arregacemos as mangas e façamos com brio a parte que nos cabe. Os gigantes simbolizam, nesse sentido, todos os obstáculos que um homem deve vencer para assumir a própria altura e, a partir disso, tornar desperta a consciência.
Por isso vale mais tomar cuidado com os homens pequenos gigantes, pois deles é que se espera maior crescimento; são esses os que realmente podem atingir com sua grandeza os padrões arcaicos coletivos que sob os nomes de culpa e sofrimento pesam sobre a alma da humanidade, para então saneá-los mediante a conduta limpa de suas vidas. Vencer os gigantes é também superar forças trevosas egóicas e subegóicas nossas ou daqueles que querem, por falta de luz própria, nos controlar. Nesse sentido o que vale é fazer como Davi que derrotou Golias com agilidade e esperteza: o homem estará livre do jogo dos outros tão logo se liberte, primeiro, interiormente. Só assim poderá crescer e assumir-se pleno na espiritualidade.
Sim, não resta dúvida: é importante ser pequeno, desde que o sejamos com grandeza! Inspiremo-nos no mar, que é imenso e profundo, pois sabe melhor que ninguém ser humilde; colocando-se ao nível do chão, recebe todos os rios que o tornam soberano.
Rico texto, adorei revisitar os personagens históricos citados, as ilustrações que me cativam…mesmo correndo o risco de me tornar uma “arroz de festa” aqui, impossível não parabenizar, ao menos. Tornei-me fã!