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A Sombra de Alan

Correm boatos de que Alan Rodrigues seja uma sombra. Nas vezes em que primo visitá-lo (ele me pede que só o faça às noites), comum é encontrá-lo em seu silêncio, a compor almas secretas. Outro dia, melhor dizendo, noite dessas, alta madrugada, eu adormecera em seu sofá após o jantar, despertei com ele ao piano interpretando a Sonata ao Luar de Beethoven, como gosta de fazer, à luz dos candelabros, garrafa de vinha aberta a seu lado. Ele me ofereceu então uma taça de seu chileno preferido, Casillero del Diablo: “Claro que há outras preferências, observou, mas este me remete àquela noite ‘au bar du vin’, enoteca onde lancei meu Opúsculo dos Corvos, lembra-te?“. Inteiramente manuscrito, letras góticas a nanquim, era sua primeira coletânea de sonetos, ofertada a poucos amigos de seu círculo esotérico, edição composta por apenas 13 únicos exemplares.

Alan vive dizendo que, sendo eu o médico, é ele o monstro. Claro que não me recuso a dar-lhe algumas vezes meus palpites clínicos, muito embora nunca sejam ouvidos. “Ocorre que amizade assim tão próxima impede qualquer relação que se aventasse terapêutica entre nós; a propósito, nem eu me animaria em tratar caso perdido”, brinco com ele, ao que Alan teima na piada: “Problema teu! Se não podes ser meu médico, nada impede que mesmo assim eu seja o teu monstro”.

Tão logo brindamos à memória de a Robert L. Stevenson, ele me convidou a ir com ele à outra sala, na qual dizia estar à nossa espera outro grande literato, seu preferido mestre, nada menos que o Leviatã da Paraíba, com quem ele jura conversar todas as noites. E sempre em sua magistral performance, taça erguida, citou de memória os primeiros versos de Monólogo de uma Sombra, cujas 31 estrofes sabe declamar de cor e dramaticamente:

“Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!”

E tendo convocado por testemunha mestre Augusto, Alan abriu-me então seu caderninho pardo onde anota seus sonetos góticos de cunho metafísico, povoados por gárgulas, morcegos e vampiros. E contou-me há duas noites haver sonhado com a estranha cópula entre dois corvos, um negro e o outro cinza, e que acordara deste sonho sentindo-se tomado por uma ‘obscuridade intrínseca’ (sic), que lhe havia provocado a compor seu mais recente soneto, peça esta que ele me leu como se sonata beethoveneana fosse:

 Sombra1

SOMBRASSOLÍTICA

De brevi-longilíneas dimensões,
bizarro e negro monstro em aparência,
disforme em minha incólume existência,
em sombra eu me desdobro aos borbotões.

Pois, sombra, eu me escureço à quintessência,
perscruto em silhueta os meus porões;
projeto os meus contornos, meus senões,
quimeras que me seguem em penitência.

Em trevas, eu virtual íncola escuro,
escravo de meu Sol, preso à caverna
e acorrentado às ilusões do mundo

visito-me em penumbras e à lanterna…
quem sabe um dia eu vença a úmbria e o muro,
que é por querer ser Luz que em mim me afundo!

Alan Rodrigues de Carvalho
meia-noite de 23/XII/2011

Acordei na manhã seguinte em minha casa era quase meio-dia. Reli o soneto de Alan, cujos versos copiara. E foi aí que me dei conta: seus derradeiros versos eram um nítido pedido de ajuda. Por um momento repassei nossa conversa. Era como se Alan estivesse ali, ao pé de minha cama, sombria pose, a projetar-se sobre abismos. Rabisquei-lhe então rapidamente uma carta-resposta: “Segue em frente e confia! Teu sonho anuncia uma grande integração, presumo algo esteja prestes a ocorrer entre ti e ti-mesmo”, e grifei, “esses teus corvos, macho e fêmea, ora, como ontem não nos ocorreu? São Nigredo e Albedo se encontrando, este último em noturna cena, disfarçado sob o cinza”, e prossegui, “de naturezas opostas entre si, mas também complementares, a união desses pássaros é prenúncio da comunhão que perpetua o milagre da ‘coisa única’, que diz respeito ao Self, ao verdadeiro Ser, como nos ensina Christiano Sotero, nosso mestre artesão”.

Se Alan preferia sempre estar à sombra e viver sob auspícios dela, seu soneto era clara imagem de uma alma em sua itinerante visitação interior. Que se pusesse, pois, a fundo em conhecer-se, que mais ousado fosse às cavernas de si próprio a dar com o minotauro de seu próprio labirinto, essa descomunal dose de instintos e talentos brutos que, dormentes, jazem no mais escuro de nós mesmos. Assimilar a sombra, assinalei-lhe, é estar disposto a jamais dar as costas a si mesmo, é dar sentido à parte escura que nos pertence essencialmente e que pede ser amada, ao menos reconhecida, a fim de que nossos ocultos naturais valores possam ser trazidos à redentora luz da consciência. E mandei junto à carta uma cópia colorida do Arcano XVIII, no simples intuito de ampliar-lhe o alquímico tema de seu sonho. Afinal, se sombras todos temos, é porque antes somos luz. E toda vez que a alma lança luz sobre o ego, mais se faz luminosa e nos alça à Luz Maior da Consciência.

18_Major_A Lua

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