ENTRE A FOICE E O TRIDENTE
— Saturno, além de bem representar a figura paterna, costuma estar presente em nossos mapas na área da vida onde enfrentamos nossas provas mais densas e concentradas, para usarmos aqui uma linguagem alquímica. Saturno traduz uma força reacionária, a polarizar com a tríade de planetas além de sua órbita, invisíveis aos olhos desarmados, ‘planetas transaturninos’ esses que, devido à lentidão de seu trânsito, acham-se ainda relacionados aos processos evolutivos e coletivos de toda a humanidade.
Assim falava mestre Nicolau, sentado sobre a trípode. Sob o céu plenestrelado e límpido daquele interior paulista, admirávamos as estrelas sentados sobre a laje de sua casa, à moda de Nostradamus quando redigia suas Centúrias, no telhado de sua maison em Salon de Provence, e também Santos Dumont, pai do avião, quando perscrutava o céu do observatório que erguera no patamar mais alto de sua Encantada, em Petrópolis.
Reacendi a candeia a óleo, e buscando pela nota que eu transcrevera do astrólogo parisiense Dane Rudhyar (1895 -1985), li para meu mestre:
— “Saturno, todavia, representa uma linha básica de demarcação entre estas duas forças opostas, a galáxia e a solar. Os planetas que estão no interior da órbita de Saturno são principalmente criaturas e vassalos do Sol, enquanto os planetas para lá de Saturno são o que eu chamo de ‘embaixadores da galáxia’. Concentram sobre o sistema solar o poder dessa vasta comunidade de estrelas, a galáxia. Não pertencem por completo ao sistema solar; estão dentro de sua esfera de influência para desempenhar uma missão, para ligar o nosso pequeno sistema (do qual o Sol é o centro e a órbita de Saturno a circunferência) ao sistema maior, a galáxia”.
Nicolau anuiu: — Sim, é a perene queda de braço entre os ‘super-heróis da galáxia’ e poderoso pai Saturno; vale compreender que os planetas transaturninos se põem bem além de nossas questões mais ordinárias; suas órbitas jamais se adequam à nossa racionalidade, transpõem amplamente a esfera do individual. Diante desta tríade, no anseio por compreendê-los, tudo o que precisamos fazer, em verdade, é procurar senti-los.
Fascinado, aguardei que Nicolau focalizasse o telescópio noutras joias, antes que continuasse:
— Se me fosse possível resumi-los numa só palavra, diria que Urano ‘revoluciona’, Netuno ‘espiritualiza’, e Plutão, por sua vez, ‘transmuta’. Esses ‘embaixadores galácticos’, nos dizeres de sua leitura, nos impelem a mudanças bem profundas. Urano, sempre original, excêntrico, traz o inusitado; Netuno, o místico, faz emergir o desconhecido, nos põe em sintonia com a consciência impessoal; já Plutão, Senhor dos mortos, também aquele que nos autoriza a renascer espiritualmente, catalisa as transmutações alquímicas da alma.
Uma estrela neon-cadente riscou a noite nesse instante. Ambos guardarmos uma intenção. E prosseguiu Nicolau:
— Esta trinca planetária promove sem piedade as mais drásticas transformações na consciência coletiva, exigem que nos alcemos, pois, a um novo padrão de comportamento coletivo, muito além de nossa provinciana condição, incorporando assim seus ritmos e frequências aos nossos dramas existenciais. Netuno, relacionado à mediunidade, dota-nos ainda da capacidade de escuta, ensina-nos a compreender as estrelas como se estivéssemos a ouvir o chamado das conchas, que nos convidam a penetrar nos mistérios dos mares.
Mais um ajuste nas lentes focalizadoras e Nicolau me chamou a admirar o Senhor dos anéis que, devido à modesta ampliação daquele telescópio, mais parecia uma nódoa leitosa.
— À medida que a Era de Aquário transcorre, mais e mais vamos sendo tocados por essa magia transaturnina, vamos gradativamente entrando em sintonia com essa frequência alienígena, anunciadora das promessas de uma Nova Consciência. Mas não esqueçamos que há uma permanente tensão entre Saturno e os planetas transpessoais, a propiciar intensas crises e revoluções… daí decorre que os aspectos entre Saturno e os assim chamados embaixadores galácticos é preciosa chave a revelar pontos nevrálgicos em nossos mapas, áreas em que, além de nossa natural demanda cármica, encontram-se ocultos elementos curativos que nos esperam além da esfera emocional palpável. Estar em sintonia com a mensagem redentora desses planetas transpessoais nos oferece, pois, a chance de, uma vez rompida a casca da crisálida, sermos realmente alçados a uma nova realidade psíquica que nos permita ser mais felizes neste mundo.
— Lembra a reflexão de Carl Jung, quando diz que ‘não há caminho sem dor para a consciência psicológica’, acrescentei.
— Por isso é que devemos estar atentos aos decretos siderais promulgados pela tríade galáctica cujos trânsitos, duradouros e penetrantes, são propícios para que também entremos em nossas feridas mais profundas que precisam ser tratadas. Não à toa Nostradamus, Paracelso e Carl Jung dentre outros médicos alquimistas adotaram a astrologia como ferramenta auxiliar de cura. A título de exemplo, deitemo-nos brevemente sobre a relação Saturno-Netuno, que por si só já aponta para tudo aquilo que de cármico e profundo, constelado em nossos mapas (e, portanto, em nosso psiquismo), pede seja curado.
Soprei a chama da candeia e sob o incomensurável céu plenestrelado nos pusemos calados. Dali a uns instantes de reflexão, Nicolau expôs sua visionária explanação:
— Do confronto entre Saturno-Netuno depreendem-se estalidos metálicos agudos e flamígeros, dado ao choque de bravas lâminas que vivem a esgrimir entre si: de um lado a Foice de Saturno, do outro, o Tridente de Netuno. Certos mapas, entretanto, acusam maior ‘densidade cármica’ não tanto pela posição de Saturno em relação aos demais planetas transpessoais, senão pela ênfase de Água que apresentam, haja vista o quanto esse elemento – particularmente regido por Netuno – diz respeito às nossas maiores necessidades de aperfeiçoamento emocional e, concomitantemente, de cura de certas chagas ancestrais que trazemos em nossa genealogia. Sim, redobrado cuidado devemos ter com nossos signos e casas do elemento água; só mesmo decifrando seus enigmas é que deixaremos, feito Sísifo, de levar pedras ao alto da montanha só pra vê-las depois rolar pra baixo novamente.
Mantinha-me atento.
— No tocante a isto, roga verdade psicastrológica das mais cruas que ‘para nos libertamos dos velhos hábitos neuróticos, em geral saturninos, precisamos antes nos ligar a algo realmente mais saudável’.
E conforme Nicolau falava, mais eu me compenetrava das maravilhas e do alcance da astrologia médica, especialmente no que tange à esfera do psiquismo e à cura de nossas almas.
— A única força, entretanto, capaz de operar tal libertação, prosseguia Nicolau, é de ordem espiritual. Diante do impasse criado, desta tensão de valores causada pelo embate de Saturno com Netuno, vale compreender que quanto mais nos fizermos enraizados naquilo tudo pertence à prosaica realidade saturnina, maiores serão as chances de captarmos de Netuno sua mensagem redentora. É preciso, assim, não arredar o pés da realidade que nos cobra ação se quisermos nos alçar com equilíbrio psíquico às esferas transcendentes. Por outro lado, ainda que logremos êxito nesse intento, corremos de imediato um novo perigo: Netuno, às avessas de seu pai Saturno, vive a nos iludir, a dissimular a realidade que nos cerca; em nossos mapas sua presença indica justamente a área onde mais tendemos a idealizar as coisas, ou ainda, onde se encontram nossos maiores defeitos cuja existência preferimos negar ou denegar, que mais têm a ver com nossa propensão a fugir das responsabilidades; em Netuno acha-se submerso o risco de, mais das vezes, deixamos afogar nos mares da presunção a nossa melhor chance de verdadeira salvação.
Preocupado diante da complexidade desta questão cármico-astrológica, expressei-lhe minha dúvida:
— Imagino seja mesmo terrível esse deflagrado embate em nossos mapas, entre a Foice e o Tridente. Como então sobreviver a ele? Se bem compreendi, saberemos nos curar um dia? Chegará o tempo em que faremos nossas pazes com Saturno? Ainda: saberemos nadar nas águas de Netuno sem nos afogarmos em nossa própria insegurança emocional, entre tantos medos e temores? Enfim, haverá Luz a nos salvar das guerras que travamos em nossos céus e mares mais profundos?
O mestre se afastou do telescópio e reacendeu a candeia. E foi sob sua luz, como se tomado estivesse por plúmbeas forças das marés, franzido saturnino em sua testa, que ele redigiu a grafite e em poucos minutos alguns versos que pareciam descer-lhe das mais altas estrelas, ao mesmo tempo em que estes se lhe emergiam dos mais profundos oceanos. E em heroicos decassílabos, assim me respondeu:
SATURNETUNO
Saturno são limites, estatutos;
é Cronos de ampulheta e foice à mão,
é o tempo, um deus secreto, um artesão,
é um pai que ao transladar cobra tributos.
Netuno lhe faz frente em conjunção;
qual filho contra o pai roga-lhe insultos,
exige por direito herança e frutos,
e inunda-o com seu mar: dissolução!
E cruzam-se no céu foice e tridente;
estrelas na batalha são feridas
e caem ao mar profundo em profusão…
E os deuses chegam à paz… guerras vencidas,
das estrelas caídas, luz cadente,
Netuno cria os peixes: compaixão!
Nicolau Nicolei de Ptolodamus
Astrólogo do Rei
Porta-Céu de onde estamos!
Sol aos 7º de Virgem, 22h22min, ano de MMXII