Naquela manhã monge Niseias acordou diferente. Sentia-se estranho. ‘Preciso ser igual aos anjos’, foi seu primeiro estranho pensamento. Estranho mesmo, muito estranho, o pensamento estendeu-se… ‘pois os anjos nada fazem senão louvar a Deus, só para isso é que vivem; não há meta maior para um ser humano que não seja transformar-se em anjo’, concluiu.
Logo após o desjejum comunitário, solicitando entrevista com o Superior de sua ordem, comunicou-lhe que queria deixar o mosteiro, iria viver na floresta a fim de se tornar anjo. O Superior ainda tentou argumentar, mas Niseias estava resoluto.
— Se após vinte anos convivendo entre nós, é este teu entendimento, nada posso fazer senão abrir-te a porta – disse-lhe o monge Superior, cujo olhar fez-se triste e piedoso.
E foi assim que Niseias, dizendo que jamais voltaria, abandonou seus pares. Embrenhou-se pela floresta, buscou uma caverna, sentou-se sobre uma pedra e ali ficou entregue a orações, na certeza mística, assim lhe dizia seu coração, de que estava prestes a transformar-se em anjo.
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Três dias depois, era madrugada, alguns monges que oravam em vigília ouvem bater à porta do mosteiro. O próprio Superior, que estava entre os vigilantes aquela noite, foi à porta e interpelou:
— Quem bate a essa hora?
— Sou eu, monge Niseias; por favor, abre a porta.
— Impossível. Niseias foi-se embora daqui; disse ainda que não voltaria.
— Mas voltei, Senhor – disse Niseias, reconhecendo a voz do Superior – Por favor, abre a porta; tenho frio e passo fome.
— Mas como podes ter frio e passar fome, Niseias? A estas horas já não te tornaste um anjo?
— Arrogância minha, Senhor. Pura tolice de meu ego besta. Perdoa-me, sim? Os anjos, em verdade, vivem a guiar os homens; por isso glorificam a Deus e contemplam as maravilhas. Eu, imperfeito, em minha pobre condição humana, só poderei um dia aproximar-me deles e contemplar as divinas maravilhas se estiver absorto e entregue ao meu trabalho diário, vivendo minha pessoal missão.
E vendo que era o velho Niseias quem realmente havia voltado, mais humilde agora do que quando estranhamente partira, o monge Superior abriu-lhe a porta, com um olhar misto de alegria e de bondade.
(História de autor desconhecido, recontada livremente por Paulo Urban)