Há horas frente ao sagrado fogo, solitário, eu meditava. Noite intensa de estrelas e trabalho. Vigiar e orar era a palavra de ordem, mas nem sempre permanecemos atentos o quanto deveríamos. E foi assim que, entre reflexões e devaneios, perguntando-me acerca de meus desígnios, deixando-me envolver por armadilhas, baixei a guarda e esmoreci. Foi quando então senti entrar-me a lâmina por debaixo de meu braço esquerdo entreaberto, e ela me espetou à altura do quinto espaço intercostal, bem ali, no chamado ictus, o exato ponto onde podemos palpar o batimento cardíaco.
Uma fisgada aguda, pensei fosse um infarto! Mas não, não era; embora sentisse a dimensão física dessa dor, imediatamente compreendi que o que doía em mim era uma dor feita do Bem. E pude ver a Catedral de minha alma sangrando em via sacra sua retida compaixão, e nela havia um sublime coro de hostes repercutindo em uníssono o agudintenso estado de meu coração ora tocado, servido sobre o altar numa bandeja de prata.
Touché! – exclamou o Arcanjo, o mesmo que repentinamente me estocara, ainda ali, a chamar-me ao sério. Sua luminosa presença brilhava de tal forma à minha frente, que a fogueira acesa já nem fazia diferença. Era-me impossível discernir por trás de tanta luz os traços de sua face, embora com toda nitidez pudesse ver erguida na verticalidade sua lâmina flamígera, embebida de um sangue que por ela escorria e que, logo compreendi, não era outro senão o meu.
Ora et labora! – lembrou-me a hoste, fazendo-me subitamente entender que toda oração pressupõe se complete pela ação, que todo silente ato de rezar só cumprirá, no raio de sua intenção, o que se possa, pois, por meio do trabalho, re(ali)zar-se. E justamente por conta de que toda Obra alquímica cobra atitude, é que é preciso, então, manter-se sempre em guarda o alquimista. Sem continência não se cumpre o conteúdo, sem o preparo em retidão da carne não se recebe o dom do Espírito. Porque cabe às criaturas, espada a mão, a exemplo do que ensina o Arcanjo, cortar fora toda ilusão, extirpar as ervas daninhas que dão ramas ao ego, a fim de rasgar o véu do Mistério a ser compreendido, aquele que nos alçará à luz de nossa pessoal Missão, nosso quinhão cósmico, a fazer cumprir nossa pauta na partitura da Grande Orquestração Divina. Coração ainda sensível, dor viva à estocada, fez-me compor o Signo:
TOUCHÉ!
Sentado ao pé do fogo eu meditava
passando em exame a vida, em oratório,
ardendo-me em fogueira, um purgatório,
drenando-me em silêncio, aguda oitava.
Lá do alto de meu próprio observatório,
de repente, caí de onde eu estava,
adormeci, logo eu, que vigiava,
esmoreci… perdi meu diretório.
Foi quando a dor fisgou-me o coração,
senti sua crua lâmina à estocada
que penetrou meu ictus precordial.
Mas logo vi que não, não era o mal;
o corte a me acordar no amor da espada
era Miguel cobrando-me a Missão!
Paulo Urban
noite de 21 de setembro, MMVIII
em trabalho de equinócio, à luz da ayahuasca
decassílabos heroicos
Esmorecer é, para mim, como a erva daninha da persistência, penso até que algo se apossa do corpo distraído em busca do prazer de possuí-lo em alguma outra dimensão. Vigiar o dia nosso de cada dia é um árduo trabalho de presença. Eu sei porque eu “durmo”:dor de quem tem pressa por deixar-se acometer pela fragilidade e pela desconfiança quando os sinais aparecem no caminho. Desconfiar de si próprio é dolorido, no entanto há uma leve facilidade nisso: repousar o mundo na lógica da razão, no conforto do controle, na ideia de que o caminho é linear e totalmente acessível a mente egoica. Dói de lá e dói de cá, então resolvi segui os sinais, apesar de enfrentar a “angústia das reflexões” como você menciona em um dos seus textos aqui no blog. Nos momentos de pressa ouço um terrível silêncio dentro de mim, como se agora eu tivesse que me virar sozinha com as minhas “bolhas no pé”, com o “meu cansaço”, “meu ritmo desregulado em relação ao grupo”, que por mais que os sinais já tenham se mostrado, não me aliviam as “angustiosas reflexões”. Talvez, talvez… se precise persistir e resistir à um dia ou alguns dias de “dilúvio” sem muito poder fazer senão conviver com “a água que jorra do mar”. Nem sempre consigo tirar “peixes” para que eu alimente a minha consciência, as vezes eu passo “fome” mesmo e tenho que me contentar que não é um dia auspicioso para “pescar”.
Muito grata por você deixar o espaço aconchegante para compartilhar quem somos.
Beijo.