Plutão Mitológico – ATO II
— E o que fez a deusa? – perguntamos.
— Primeiramente, agradeceu ao rapaz. Pela primeira vez, voltava a haver um norte. E nem teve dúvida, Deméter subiu direto ao Olimpo. Entrou chutando o que via pela frente, derrubando as mesas postas aos banquetes, destruindo mármores esculpidos por Dédalo, quebrando obras de arte… maior escândalo jamais visto nas alturas. Diante de seu possesso estado, ensaiando surpresa, Zeus alega não saber de nada. Pede a Deméter que se acalme, com o que mais intensa fica sua cólera. Apolo, o bonitão, some dali. Furiosa, a deusa exige sua filha de volta. Em seu magistral cinismo, Zeus promete à sua amante e irmã que enviará imediatamente Hermes aos Infernos a fim de constatar se a moça realmente está por lá. ‘Ora’, diz-lhe ele, ‘se Plutão a raptou, pelos cabelos de Medusa! É preciso agir depressa!’
— Santa politicagem fisiológica!
— Tão podre esse Olimpo quanto Brasília!
Nicolau anuiu. Sentando à mesa, pôs-se a narrar:
— Aparentemente, o jogo virara. Deméter agora dava as cartas: ‘Pois, decreto aqui o fim de toda e qualquer fertilidade’, ela ameaçou, ‘se é com o Senhor dos Mortos que estou a lidar, ele vai ficar feliz ao saber que demando a morte de tudo, inclusive a dele! A partir deste instante, a terra não dará mais frutos! Serão tempos de escassez; haverá primeiro a fome, e então a morte, e assim será até que o último grão de alimento se extinga!’
— Terrível perspectiva!
— Como vimos, desde a enfermidade melancólica de Deméter, o planeta todo adoecia. Agora, num acesso de raiva, estava a decretar a esterilidade absoluta, com o que em breve adviria o fim da humanidade. E na ausência dos homens… o que seria dos deuses? Nem estes teriam existência que se justificasse. Seria simplesmente o fim de tudo. O Cosmos que depois se reinventasse. E Zeus logo estaria deposto, mera questão de tempo.
— E o que fez o ban-ban-ban do Olimpo? – indagou Alan.
— Chamou Hermes de lado e em sigilo mandou que fosse correndo ao Hades a fim de investigar, trazer notícias de a quantas andavam as coisas por lá. Feito isso, realmente preocupado, correu para o colo da mamãe a pedir conselhos. Reia, bem sabemos, também mãe de Deméter e Plutão, sempre guardara preferência por este seu menino, haja vista fora Zeus quem a salvara da desenfreada gula do marido, que lhe devorava os filhos, um a um.
— E Hermes? Que situação encontrou nas profundezas? – perguntei.
— Uma cena que, embora esperada, tornara-se um nó górdio a ser desfeito.
— Como assim?
— Ora, os cúmplices bem sabiam que a menina, sim, estava lá. Porém, era tarde: ela já deixara de ser Core para transformar-se em Perséfone, Rainha das Sombras.
— Por que a mudança de nome?
— Porque já se alterara sua qualidade de mulher. Ela já provara da romã. Por sinal, sorvera com todo gosto da poção. Aquela inocente mocinha dos pagos se fazia agora Perpétua Senhora do Mundo dos mortos. ‘Báah…, daqui não sai esta guria; eu sou machista, tchê!’; já foi dizendo Plutão logo de cara ao emissário de Zeus. ‘Nem eu tampouco volto para cima’, ajuntou a moça, ‘manda dizer à minha mãe que estou muito bem casada; e perdidamente apaixonada’! Consumatum est … a leitura é clara; sim, haviam já se amado, era a carne ainda quente quem os unia.
— Então era mesmo o fim do mudo! – Alan exclamou.
Nicolau sorriu e nos serviu as taças prazerosamente.
— Estou algo aflito com o criado impasse – protestei.
— Imagine Zeus, então! – lembrou Nicolau, que assim continuou:
— Conforme o perpetrado plano, Core não resistira aos encantos da poção, menos ainda aos másculos predicados do marido. E por haver de bom grado bebido daquela taça no mundo dos mortos, já não podia sair de lá.
De novo empostando a voz, assim narrou:
— ‘Ela estava até feliz’, reparou Hermes, ‘um sorriso diferente, de uma malícia fria. Nenhuma queixa contra o raptor. Aliás, lembrou que era mais do que a hora de desgrudar-se das saias de sua genitora, que ela acusa ser de gênio bem complicado, uma mãe possessiva. Resoluta, cheia de ímpeto, assim me disse: ‘Manda dizer à minha mãe que daqui não saio, não!’
Nicolau ator, caras e bocas, era divertidíssimo.
— Bem… era este o trovão a ribombar! Um problema todinho de Zeus que, propriamente, era quem o havia criado. Fim do recado. Hermes até se sentou e pôs de lado o caduceu, dando mostras de exaustão. Mas Zeus nem quis saber: passou-lhe a incumbência de retornar imediatamente ao Hades e recomendar ao recém-casados exatamente aquilo que Reia lhe aconselhara, do contrário, tudo estaria perdido: nem Perséfone seria feliz nos Infernos, nem Hades reinaria ao lado da escolhida, nem o Olimpo teria futuro… não fosse solucionado o impasse, seria o fim de tudo. E Plutão que não se fizesse de macho, afinal, seu reino não teria sentido em existir desvinculado dos ciclos de vida, morte e ressurreição que lhe dão sustentação.
— E Plutão e Perséfone? Como foi que reagiram?
— Exatamente como Zeus tudo planejara desde sempre. Disseram, pois, tudo o que ele queria ouvir desde o dia em que assumira seu trono. A resposta conferia consumação a uma ordem que ele pretendia ver estendida ao mundo todo, por ele regido e organizado.
— Como assim? Não compreendo – falei.
— Sim, onde é que Zeus queria chegar? – ajuntou Alan.
— Ao estabelecimento natural das quatro Estações. Lance de mestre! E contou com seu irmão Plutão a assumir o protagonismo dessa parada.
Éramos uma só interrogação. Ele prosseguiu:
— Se a Gigantomaquia representa o período de assentamento e esfriamento da Terra em sua órbita desde quando nosso mundo foi criado, o impasse ora criado em torno de Perséfone responde, antes de tudo, pelos ciclos das estações. Sem estas, independentemente da boa ou má vontade de Deméter, nosso mundo estaria fadado mais dia menos dia a ter seu fim. A terra jamais seria fértil, indefinidamente, não fosse o surgimento desse natural milagre, o das transformações cíclicas que conferem ao nosso planeta sua perene vitalidade.
— Zeus enxergara longe desde o início! – exclamei.
— E Plutão de mesmo modo. Nenhum inocente aqui, em seus divinos papéis. Só Deméter não queria enxergar. Manter sua filha presa debaixo de sua saia seria decretar à terra um infantilismo em tudo prejudicial à prosperidade que se espera dela. Seria dar um tiro no próprio pé. Urgia, pois, que houvesse um plano a pôr fim a essa tirania de mãe cega, que não quer ver seus filhos crescendo nem multiplicando de verdade. Não fosse o bendito maldito rapto, Deméter jamais libertaria Core, e a mocinha não assumiria responsabilidade sequer por seus ciclos menstruais. Nunca seria o dia em que Deméter abriria mão dessa simbiose temerária, a manter a filha aprisionada ao seu útero primitivo, esse ventre devorador, resquício neurótico herdado de seu pai; sim, uma chaga ancestral, coisa digna a ser tratada em sessões de constelação familiar. Fazia-se mister que houvesse, pois, um corte cesariano a fazer parir a vida em seu exercício pleno e natural. Eis dentre todas a lição mais antiga: o amor, se verdadeiro, liberta, jamais faz posses nem retém. Afinal, criamos nossos filhos para a vida ou para o mesquinho prazer de os ter sempre por perto?
Concordamos.
— Por isso é que assim ficou decidido, consoante havia sugerido Reia, do alto de sua sabedoria: a fim de que Deméter jamais perecesse, senão voltasse às ganas de viver, acertou-se que Perséfone passaria seis meses do ano com ela, ao passo que, durante o outro semestre estaria junto de seu legítimo marido, a reinar no mundo ctônico, por sinal, o veio de onde nascem as raízes.
— Averbado o contrato, Deméter se refez? – perguntei.
— Não de modo absoluto, mas justamente este é o encanto do contrato.
— Como assim?
— Mesmo ciente do acordo, o caso é que nos meses em que Perséfone desce ao Tártaro, Deméter emocionalmente se ressente, com o que as árvores começam a desfolhar-se – eis aí o outono. Conforme perdura o distanciamento, instinto natural de mãe, por sofrer dessa ausência da filha, sobrevém o Inverno, espéculo da desolação de Deméter. Este só termina no Advento, cujo nome, em grego, diz-se ‘Elêusis’, justamente o Equinócio por onde entra a Primavera, quando então as flores ressurgem e as cores da vida ficam mais belas, numa alegria sempre crescente até o apogeu do Verão, quando então, conforme este começa a fenecer, dá novamente seu lugar ao sépia outonal, a anunciar que todas as coisas e seres estão em permanente rotatividade, sujeitas à transmutação, por sinal, um dos principais atributos de Plutão.
— E foi assim que entre deuses e mortais, todos nos salvamos! – desabafou Alan, sorvendo aliviado de seu tinto.
— Cumpre-me dizer ainda duas palavrinhas em relação a Triptolemo.
Pusemo-nos atentos.
— Concluída a demanda, acertado como se daria o jogo daqui para frente, Deméter volta a ter secretamente com o rapaz. Vem entregar-lhe um grande tesouro, a dizer, seus Mistérios.
— Os decantados Mistérios de Elêusis!
— Estes mesmos. Deméter vinha reconhecer a gritante diferença de atitudes entre um deus prepotente e um simples mortal. Apolo, o Sol em pessoa, testemunha do rapto, por covardia preferira ser cúmplice da mentira. Já Triptolemo, preocupado senão com o bem-estar de sua hóspede, sem receio da verdade, trouxera-lhe a informação que lhe permitiu ao menos saber por onde começar a procurar por sua filha. A constatar que divina é sempre a condição do humilde, e doentia a presunção dos grandes.
— Pois, conheço vários colegas de profissão, especialmente psiquiatras, também cirurgiões, que se julgam os próprios semideuses. A vida acadêmica está cheia desses arremedos de Apolo.
Nicolau prosseguiu:
— Deméter é generosa com Triptolemo. Primeiro o instrui quanto aos ritos pelos quais os homens deverão prestar a ela suas homenagens, com o que se instituem os Pequenos e os Grandes Mistérios, a serem anualmente celebrados. Os Grandes, mais poderosos, reservados apenas aos verdadeiros Iniciados, coincidiam com os festejos do mês de Boédromion, justamente a época do Equinócio, quando a Primavera dá sinais de que Perséfone volta à superfície da Terra. E a fim de que estes Mistérios se perpetuassem sagrados, entrega ainda a Triptolemo o ‘grão da vida’ (kárpon pherésbion), que ela escondera por ocasião do rapto de sua filha, a semente primeva sem a qual nenhuma outra prosperaria.
— O grão de todos os grãos! – apontou Alan.
— Sagrado grão! A partir deste, ela ensina a Triptolemo a preparar o Cyceon, misteriosa bebida psicoativa à base de trigo, a ser servida aos comungantes dos Grandes Mistérios. Por último, oferece-lhe um trono alado; alguns juram fosse uma carruagem tirada por dragões, com o qual deveria viajar mundo afora a ensinar aos povos e às gentes a arte da agricultura. Daí o nome deste missionário da deusa ser Triptolemo: ‘aquele que revolve a terra 3 vezes’, ou ainda, ‘aquele que é 3 vezes guerreiro’ (tri = três + polemos = guerra), dado aos três segredos que lhe foram conferidos pela própria mãe Terra.
— Fascinante! – exclamamos.
Guardadas as fantásticas proposições do mito, Alan resolveu perguntar acerca de Plutão astrológico, queria saber do mestre como se interpreta sua ocorrência em nossos mapas. Ademais, não era outra desde o início senão a principal razão desta nossa tertúlia mito-astrológica-planetária, o motivo pelo qual Nicolau nos intimara à sua casa.
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… este texto continua em … Plutão Astrológico – I
Para ler todo ele desde o início, siga os links:
Plutão, Pai das Estações – Parte I
Plutão, Pai das Estações – Parte II
Encantador, “rico” e divertido, arrancou-me boas risadas, já sou vossa leitora consumada que, no ato de ler, sente-se a personagem oculta do texto e nele mergulha, se faz presente, invisível e silenciosa como o próprio Plutão, para ali participar de todo o páthos.
Se esta “viagem” auferida não for o máximo da satisfação dos sentidos, não saberia então que elogio maior lhe caberia, caro Amigo escritor, que maravilha!!