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Plutão, Pai das Estações – Parte V

Plutão Astrológico – Ato II

Albrecht Dürer – Autorretrato, 1498 – óleo sobre painel

Levantando-se, o mestre dirigiu-se a uma das estantes da sala, aquela em que reunia as principais obras das grandes tradições espirituais, cujas prateleiras sustentavam raras edições do Rig Veda, do Dhamapadda, do Sepher Yetzirá, do Corão… puxou uma de suas Bíblias cristãs encadernada em couro e trouxe-a consigo. Depositando-a sobre a mesa, conferiu suas últimas páginas e abriu-nos o Apocalipse. Uma imagem de página inteira era o frontispício de seu 6º Capítulo: a célebre xilogravura do ilustrador Albrecht Dürer (1471-1528), a representar os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. E compreendemos quem eram, então, João e Alberto: o primeiro, o visionário apóstolo; o segundo, o pintor alemão. Alan e eu nos entreolhamos desconcertados face à peça que o mestre nos pregara.

— São quinze ao todo, quinze xilogravuras de Dürer que ilustram o Apocalipse de João – explicou-nos.

Debruçamo-nos a admirar a estranha figura.

— Dado às circunstâncias conturbadas do mundo àquela época, esse trabalho de Dürer encontrou ampla aceitação. A Europa, recém-saída da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), há pelo menos século e meio enfrentava a Peste Negra que grassava por toda parte, com focos de recidiva aqui e ali, espraiando seus mortos aos milhões. Estas xilogravuras surgem precisamente em 1498, próximas, pois, à virada de século, quando o imaginário popular acreditava piamente que o Juízo Final estivesse prestes a ocorrer, razão pela qual o Apocalipse bíblico era uma espécie de best-seller do momento. Tais ingredientes repercutiam de tal forma que o artista não só se fez logo famoso como enriqueceu com estas ilustrações, o que lhe permitiu doravante exercer livremente sua arte, sem necessidade de mecenas algum que o patrocinasse. Estamos diante da 4ª xilogravura da série, intitulada Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, uma de suas criações mais formidáveis.

Enquanto nos deixávamos impressionar pela sinistra cena, Nicolau discorria:

— Cada qual destes cavalos surge respectivamente a partir dos 4 primeiros selos de um total de 7, que são abertos, um por vez, desde o 6º até o 8º capítulo do referido Livro de João: do 1º selo liberta-se um cavalo branco, cujo cavaleiro está armado de arco e flecha. “Foi lhe dada uma coroa e ele partiu vencedor para tornar a vencer” (Ap 6, 2).

Bem se via na gravura, era o cavalo mais avançado de Dürer.

— Do 2º selo “Saiu outro cavalo, cor de fogo, e a quem o cavalgava foi concedido desterrar a paz da Terra para que os homens se degolassem uns aos outros. Também foi dado a ele uma espada” (Ap 6, 4).

Terrível, a cumprir sua funesta missão, Dürer desenhara o 2º cavaleiro com a espada desembainhada à mão direita, erguida ao alto da cabeça.

“Quando se abriu o 3º selo (…) Olhei e eis que um cavalo preto, e quem o montava tinha uma balança na mão” (Ap, 6, 5).

Esse Cavaleiro Dürer o destacara ao centro da xilogravura, em desabalada carreira, a trazer uma balança na mão direita, embora numa posição atrás de si, como se ele a puxasse.

— Já do 4º selo, ao ser desfeito, “Olhei e vi um cavalo baio e quem nele montava tinha por nome Morte e o inferno o seguia” (Ap 6, 8).

— Enigmático o texto, enigmáticas suas figurações – comentei.

Cristo em Glória, pintura, c.1.200

— E quem são eles? – era Alan, direto ao ponto.

As notas de rodapé da edição que consultávamos procuravam esclarecer: diziam que cada um dos quatro cavaleiros representavam pragas desencadeadas por cada um dos quatro estranhos seres que João anteriormente vira, descritos no 4º capítulo: o leão, o touro, um ser com rosto semelhante ao de um homem e, por último, uma águia voadora.

— Continuamos na ignorância – confessamos.

— De fato, esta nota mais complica que esclarece. Há, entretanto, uma leitura corrente secular que associa estes cavaleiros, do 1º ao 4º respectivamente às doenças, às guerras, à fome (haja vista a balança do 3º estar vazia), sendo que o derradeiro é a morte, aliás, o único claramente nomeado por João. De minha parte, porém, aceito que tal interpretação clássica se ajuste ao antigo padrão de nossa humanidade, próprio aos séculos anteriores à corrida tecnológica e ao sistema econômico contemporâneo. Desde a Revolução Industrial, entretanto, dado ao advento das tecnologias e ao progressivo avanço científico, cuja aceleração se faz em escala exponencial, vejo-me autorizado a oferecer uma nova interpretação, atualizada, à quadrilha apocalítica.

Surpresa em nossas faces, pedimos que nos contasse sua pessoal decifração.

— Lembremos que esse nome, Apocalipse, provém do grego, e significa ‘Revelação’. Toda a narrativa de João expressa algo que lhe teria sido mostrado por conta de uma ‘experiência sua direta com Deus’, e tão tremenda e fascinante a sua ocorrência em relação ao ordinário da vida, que lhe faltam nomes e conceitos mediante os quais possa traduzir o mais fielmente possível a seus leitores aquilo tudo que ele viu. A preencher esse hiato, João recorre então a uma linguagem hermética, repleta de detalhes de caráter onírico a envolver símbolos, sons, cores, odores e outras percepções que lhe advêm, provenientes de um patamar completamente estranho àquilo a que seus sentidos físicos estão acostumados. E é assim que ao procurar ‘revelar sua visão’ (daí o nome Apocalipse), ele acaba por torná-la ainda mais misteriosa e intrigante, haja vista a insuficiência das palavras a dar exata noção do numinoso que o arrebata.

São João Evangelista Redigindo o ‘Apocalipse’ – ilustr. por G. de Luca

— Daí o caráter profético do texto; e por não compreendermos direito o que ele diz, é que passamos então a oferecer interpretações as mais diferentes a seus enigmas insolúveis – ponderei.

— Exato. Se já nos é difícil traduzir oralmente um simples sonho matinal, o que não dizer de experiências psíquicas mais complexas e profundas? Vale dizer: cada sonho que narramos é forçosamente diminuído em relação à experiência dele percebida, e o narramos já alterado por uma sintaxe necessária à sua comunicação. Por mais que nos esforcemos em traduzir a matéria onírica, ela sempre restará ‘em si mesma’ indevassável. Sendo assim, devo alertar que minha interpretação aos 4 cavaleiros do Apocalipse é tão-somente uma possibilidade que empresto ao desvelar de seus véus, jamais seria uma questão fechada. Outrossim, face ao fato de que nos encontramos no III milênio da Era cristã, vale desdobrar a interpretação antiga numa outra que nos seja pontual, atualizada ao desenrolar de nossa História contemporânea.

— Pois, não nos faça morrer de curiosidade. Quem são, afinal, os atuais quatro cavaleiros?

Sorriso maroto, Nicolau fez-se inspirado:

— Vamos a eles: o primeiro Cavaleiro do Apocalipse, dado ao arco e flecha que traz já armado, pronto a atirar, também por conta da volúpia com que avança, representa os Banqueiros. É propriamente o sistema capitalista que, ávido por competir e estar sempre à frente dos acontecimentos, age na certeza dessa flecha, cujo tiro é de morte e opressão. Ele traduz toda cobiça predatória a atropelar a vida sensível. Sua missão não é outra senão espalhar injustiças e disseminar pelos 5 continentes a miséria social. E ele sabe que a bem prosperar em sua ganância, precisa do apoio incondicional dos outros três vilões que, quase parelhos, vem no seu rastro, a ver quem mais cruelmente executa o seu próprio serviço.

Um aperto junto ao peito, um desconforto em respirar…

— O segundo Cavaleiro, evidentemente, espada à mão, não deixa dúvidas quanto ao seu papel: trata-se da Indústria Bélica. Daí ser este cavalo cor de fogo, explícita referência ao sangue dos campos de batalhas, às explosões dos fogos, ainda à cor do inferno radiativo de Hiroshima. Aqui concordamos com os clássicos: eis aí o Pai da Guerra, cujo acertado nome em nossos tempos é Indústria Bélica, a mesma que propõe armar os homens e as nações para assim… manter a paz. Uma falácia demoníaca.
Eu já começando a suar, e não creio fosse pelo vinho.

— Ao terceiro Cavaleiro, Fome segundo os antigos, prefiro dar-lhe um nome mais apocalíptico, a dizer, bem mais revelador: ele se chama Indústria Alimentícia, sem dúvida a maior responsável pela fome que impera nesse mundo controlado por banqueiros e fomentado pelas guerras que os primeiros patrocinam. Em seu requinte de crueldade, esse terceiro Cavaleiro responde pela pecuária abusiva, pela indústria do abate e do corte de seres vivos sencientes feito em nome dos prazeres da gula e da soberba humana, que equivocadamente se julga superior às demais espécies. Não menos que o segundo cavaleiro, o terceiro contribui enormemente a cumprir o perpetrado plano de hegemonia dos banqueiros. Em nome de seus interesses mais perversos é que florestas inteiras são devastadas para que nelas se instale o agronegócio. Este cavaleiro responde ainda pelos temerários transgênicos, pelos pesticidas de lavoura, também pelas empresas de franquias fast food, enfim, por todo lixo dietético maquiado, enlatado e industrializado que se come ou bebe em cada canto e qualquer parte do mundo. Enfim, ele responde por toda essa alimentação tóxica e artificial, adulterada por hormônios e ingredientes patogênicos disfarçados sob o mais diferentes nomes, como corantes, flavorizantes, acidulantes, estabilizantes etc… uma infinidade de misturas químicas suspeitas, a partir do que é gerada essa infinita e crescente população de obesos, diabéticos e hipertensos, só para citar aqui as três mais insidiosas doenças crônicas do mundo, cuja ocorrência é, sobretudo, prevalente na grande massa acéfala de consumidores que mais dia menos dia também irá morrer pela boca, mesmo que nunca tenham fumado um único Marlboro em toda a sua vida.

Alan e eu nos entreolhamos. Não havia o que dizer.

— O derradeiro Cavaleiro, a completar a mandala do mal da humanidade, é justamente a Indústria Farmacêutica, que, afoita pelos incontáveis bilhões que lucra com seu supernegócio, deliberadamente espalha doenças pelo mundo sob o falso pretexto de curá-las. Sempre pronta a financiar congressos médicos e patrocinar pesquisas científicas de antemão comprometidas com seus escusos interesses, em sua malignidade, chega a promover, inclusive, a criação de ‘novas doenças’ a fim de justificar o uso das novas drogas sintetizadas em seus laboratórios. Impunemente desagua no mercado suas fórmulas sintéticas que, quanto mais sejam ‘novidades’, mais caros são seus preços, a propósito, remédios estes que logo se mostram causadores também de inúmeros efeitos indesejados, quando não indutores ou antecipadores da própria morte, inclusive. Isto sem contar que as drogas de comprovada eficácia acabam sendo retiradas do mercado para que em seu lugar circulem aquelas outras tantas, não tão boas assim, que cumprirão o propósito de fazer a manutenção crônica geral de uma legião de doentes incuráveis, condenados a sobreviver gastando suas economias com a Indústria Farmacêutica, a fim de tratar os males crônicos causados pela Indústria de Alimentos, ambos por sua vez a locupletar as aviltantes fortunas dos Banqueiros.

— Banqueiros, Indústria Bélica, Indústria Alimentícia, Indústria Farmacêutica… estão aí nomeados os bois, a dizer, os quatro cavaleiros! Mas, e quanto à Morte, antigo nome de um deles, fica faltando? – protestou Alan.

— Claro que não. Ela é justamente o estandarte deles quatro. É em seu nome que cada qual dos cavaleiros põe-se a serviço, a disseminar as pragas, as guerras, a fome e a miséria pelo mundo. Agem os quatro sob a bandeira da Morte, da qual são seus emissários.

Olhávamo-nos circunspectos. Nicolau em marcha:

— Os Estados Unidos até criaram uma baia conjunta destinada a proteger dois destes intocáveis corcéis: chama-se F.D.A (Food and Drugs Administration), eis aí o nome do curral, melhor dizendo, do covil de onde saem ditadas para o mundo as normas do que é permitido ou proibido em termos do que devemos consumir, sejam remédios ou alimento, a sustentar o demoníaco plano de domínio dos Banqueiros. O caso é que nestes nossos conturbados tempos, ora, o Diabo fez-se Honoris Causae de Economia; só faz mesmo questão de ter para si estas quatro empresas, nada mais… são elas seus dois braços e suas duas patas…

— O que admiro no Demônio é este seu discreto senso de conduta; lembra até honestidade! – era Alan, sarcástico.

— Então, quer dizer que… – eu buscava a forma certa de pôr a questão – que ninguém espere pela batalha final do Armagedon, pois ela…

— … Sim! – cortou-me Nicolau – pois, ela já começou faz tempo! Basta olhar à nossa volta, por toda parte está presente. O Armagedon acontece bem debaixo de nosso nariz, assistimos de camarote ao seu desenrolar; só os cegos soem negar sua ocorrência.

Pesada aura sobre nós. Nicolau não fez por aliviar:

— Em toda a História da humanidade nunca se fez assim, tão oportuna ao demônio, sua chance de lograr vitória no milenarmente anunciado Armagedon. Talvez a maior virtude do diabo seja justamente sua paciência, afinal, nesses nossos tempos o caso é que o diabo evoluiu bastante, informatizou-se, está completamente aparelhado, fez-se acionista da Microsoft e espalha seus tentáculos pelos 5 continentes… em nossos tempos a já abocanhada maçã do Gênesis se disfarça de logomarca cibernética… até satélites de última geração Satanás tem posto em órbita. Não há o que ele não saiba, não há quem não controle; nada escapa à sua vista. Hoje mede forças com Deus por vias de seu intelecto aparelhado, de altíssima sofisticação tecnológica.

— E nunca esteve tão ocupado como agora… – ponderou Alan.

— Esse Diabo… desde o Gênesis um compulsivo perpetrador de males, só que agora, tempos modernos, virou workaholic: vestido de branco, cruz no avental, é ele quem distribui drogas de farmácia para todas as gentes; disfarçado de empresário caridoso, gerencia a miséria e a fome mundo afora, e ainda usa o nome de Deus como plataforma política. Não satisfeito com os incomensuráveis lucros que seu império lhe rende, a apimentar o jogo, vez por outra explode um WTC aqui, queima uma Notredame ali, ateia fogo nalguma floresta, destrói áreas de preservação ambiental, contamina mananciais ecológicos, e fomenta conflitos armados amiúde e persistentemente de modo a manter em perene tensão de pé-de-guerra as principais potências bélicas… de quebra, caprichoso, estimula ainda a espécie humana a trilhar seu caminho de autoextinção, posto que seguimos firmes na emissão poluentes e carbono, no firme propósito de alterar nosso equilíbrio climático que, guardadas as devidas proporções, em termos astronômicos, parece-me ser hoje em dia algo tão resistente quanto uma bolha de sabão. Pois, não me admiraria se para um futuro breve nosso planeta estiver reduzido a mero corpo rochoso e estéril em órbita do Sol, assim como é Marte, nosso vizinho, onde em época remota também houve atmosfera.

— Resta-me uma dúvida, caro mestre…

— Pois não, Alan?

— Tantas as relações desses cavaleiros com os espraiados males da humanidade, e seja ainda a morte a bandeira deles quatro, a enviar para o Hades uma interminável multidão de vencidos, que… perdão se misturo as coisas, mas… o que é que o demônio cristão tem a ver com deus Plutão?

— São completamente distintos um do outro. Talvez a confusão venha do fato de que o mais profundo nível ctônico seja o Tártaro, local de suplício das almas sentenciadas no tribunal dos mortos, presidido por um triunvirato: são os reis Eaco, Radamanto e Minos seus três juízes. A Minos apenas cabe o voto se a questão é desempate. Grosso modo, essa ideia de um local de aprisionamento das almas penitentes, comum a gregos e cristãos, acabou por corroborar a crença destes últimos na figura de um Demônio como Senhor das instâncias infernais. Só por este aspecto é que o Diabo guarda certa tangência com Plutão, embora o deus grego nada tenha a ver com a ideia do mal, absolutamente.

— Quanto a isso, pelo que sei, várias crenças cristãs se fizeram mais fortes tomando por referencial antigos costumes e festas pagãs – observei.

Papa Julio I

— Exatamente! Basta tomar o natal como exemplo: pois, só no ano de 350 é que Papa Júlio I (300-352) decreta ser o 25 de dezembro a data do nascimento de Jesus. O cristianismo há poucos anos fora oficializado no império romano, isto se dera com o edito de Milão, assinado em 313 d.C. por Constantino, o Grande (306-337). Curiosamente, nesta mesmíssima data, os romanos até então festejavam o Dies Natalis Invicti Solis (Dia de Nascimento do Sol Invencível), relacionado ao nascimento de Mitra em sua forma de deus menino, divindade esta que os romanos assimilaram dos persas.

Essas comparações e ampliações temáticas de Nicolau eram sempre interessantes. Mas a surpresa estava por vir:

— A bem dizer, entretanto, no tocante a quem mais se aproxima de Plutão no cânon cristão, a meu ver, não nenhum outro senão o preferido apóstolo de Jesus.

— Pedro? – palpitou Alan

— Madalena? – sugeri.

O mestre de novo nos fitou com aquele sorriso de quem tem carta na manga:

— Concordo que Madalena fosse, sim, a sua preferida. Uma mulher extraordinária a quem Papa Gregório V adjetivou de prostituta, propagando um mito a destratá-la, a descaracterizar sua fundamental importância na vida e Jesus. Mas falo aqui do preferido do mestre, não de sua preferida. Por sinal, outra figura de relevância igualmente injustiçada pela Igreja, que o considera o maior traidor de todos os tempos.

— Judas Iscariotes! – exclamamos.

— Reparem só como Plutão tem tudo a ver com ele.

Pusemo-nos ainda mais atentos. Ele discorreu:

— Dois malditos, dois proscritos… cada qual em seu universo: Plutão no mito grego, Judas no evangelho. Ambos os grandes catalisadores das histórias em que figuram. Como acabamos de ver, não fosse Hades haver raptado Perséfone, não haveria esse equilíbrio cíclico das estações; de mesmo modo, não fosse Judas haver cumprido seu sinistro papel, não haveria Jesus morto e, por conseguinte, jamais seria a Ressurreição.

A argumentação nos prendeu de imediato.

— Como tantos estudiosos da questão, entendo que Jesus tenha solicitado criteriosamente a Judas, justamente por ser ele seu discípulo mais próximo e confiável que, a fim de que se cumprissem as profecias, ele o entregasse no horto das Oliveiras, onde estaria a rezar à espera dos soldados, a partir do que se deflagra todo o drama cósmico da Paixão.

— Dante o precipita aos Infernos em sua Divina Comédia – lembrou Alan.

— Não obstante, desconfio esteja a brilhar no Reino dos Céus, para onde deve ter subido já no sábado de aleluia, quando, acometido por absoluto remorso, suicidou-se. Em seu desespero, sem dúvida alguma a maior aflição que um ser humano possa ter sofrido sobre a face da Terra, haja vista ele haver entregue para a morte nada menos que o Filho de Deus, Judas decide enforcar-se. Notemos que o sangue de seu mestre sequer havia sido derramado na cruz quando Judas, já havendo, inclusive, devolvido aos chefes dos sacerdotes do templo os trinta denários que recebera pela venda de Jesus, sabendo-se o pior dos homens de todos os tempos, resoluto, se mata. Tivesse aguardado pelo domingo, certamente não o faria… posto que veria a confirmação de que o plano de Jesus era de fato divino e que no fundo estava certo aquilo de mais terrível que o mestre lhe pedira fosse feito. Iscariotes teria então, quem sabe, encontrado um sentido cósmico para sua traição, com o que possivelmente se lançaria redimido a pregar também o evangelho por todas as partes, assim como fizeram os demais apóstolos depois que viram com seus próprios olhos Jesus ressuscitado.

— E quanto valiam esses denários? Era esse montante tentador?

Nicolau sorriu e nos disse com certo ar de desprezo:

— Com essas trinta moedas de prata Judas teria conseguido, quanto muito, comprar um boi ou um escravo.

Entreolhamo-nos.

— Quisesse enriquecer, procuraria outra porta. Se a questão fosse trair Jesus por dinheiro, mais fácil seria fugir com a bolsa, haja vista era ele o tesoureiro do grupo. Certamente possuíam bem mais que trinta moedas no caixa, dinheiro com o qual Jesus e seus apóstolos comiam, bebiam, viajavam, hospedavam-se… como iriam andar por toda a Palestina, viajar a Tiro, na Fenícia, por exemplo, se não tivessem dinheiro? Jesus tampouco nasceu pobrezinho, como prega o mito cristão. Ora, não era José marceneiro? Simplesmente, uma das profissões mais bem pagas àquela época. Balela que o mestre e seus discípulos mendigassem por alimento. Claro, não eram ricos, certo também que nem Jesus nem os apóstolos guardavam posses, por outro lado, evidente que não passavam necessidades. E era Judas o encarregado das finanças. Completa falta de senso acreditar que fosse vantagem vender Jesus por trinta moedas. Só encontramos sentido nisso se atentarmos para a necessidade deste seu papel no drama, o de trair seu querido mestre a pedido dele próprio.

— Ou seja, nas vezes de traidor, fez-se Judas nada menos que a Pedra Filosofal de toda a transmutação – observou Alan.

— Sim, como de mesmo modo, no papel de raptor, Hades foi o catalisador do Advento de Perséfone, cuja festa também celebra uma ressureição, momento em que a primavera dá provas de que o que antes estava morto e esquecido nas entranhas da terra, agora ressurge redivivo a anunciar a boa nova, que não é outra senão a prevalência da vida em seu caráter cíclico e soberano.

Pausa para encher de novo as taças, Nicolau assim propôs:

— E uma vez isto posto acerca do Senhor dos Mortos, estamos finalmente aptos a penetrar nos mistérios desta quádrupla conjunção em Capricórnio.

— Que certamente guarda relação com esta epidemia que bate às nossas portas – observou Alan.

— Nem fale! – anuiu Nicolau – vamos a ela, então!

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… este texto continua em … Plutão Astrológico – ATO III

Para ler todo ele desde o início, siga os links:
Plutão, Pai das Estações – Parte I
Plutão, Pai das Estações – Parte II
Plutão, Pai das Estações – Parte III
Plutão, Pai das Estações – Parte IV

One Comment

  1. Patrícia disse:

    Estes 4 Cavaleiros do Apocalipse eu os assisti menina, em filme de Hollywood, bem ao gosto da época, e confesso que fiquei muito mal impressionada. Depois disto, inúmeras vezes em que fiquei tentada a ler o Livro de João resvalei na dificuldade que as imagens suscitavam…coisa boa não é, porém o que é, de fato? Fim dos tempos, tempos que se findam, castigos divinos ou da Natureza, sua justa retribuição, uma lenta e agoniante metamorfose da Terra e dos seres que nela habitam, ou um colapso provocado pelo modus vivendi da presente era, e aqui bem e macabramente até, detalhado… darei com vocês (plus Plutão) este salto, obrigada!!

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