Bestiário Alquímico é obra das mais singulares que compõem a extensa sonetoteca de Christiano Sotero, mestre sonetista. Seu bestiário abarca distintos universos com seus incríveis monstros mitológicos, classificados em reinos e famílias, e traz ainda algumas ilustrações a nanquim e bico de pena feitas pelas mãos do próprio Christiano, exímio criador de iluminuras.
O Bestiário de Sotero inclui faunos e centauros, minotauros e sereias, pégasos e unicórnios, lobisomens e vampiros… suas páginas-papiro são ricamente habitadas por harpias, grifos e quimeras, basiliscos e manticores, além de sedutoras esfinges, súcubos e íncubos. O terrível Leviathan também está lá representado, e ainda Tífão, gigante híbrido, meio humano meio monstro, com seu escamado corpo recoberto de víboras, concebido por Geia quando esta se uniu ao Tártaro à época em que Zeus lutava contra os Titãs. Numa de suas páginas, entornando uma embarcação vicking que sossobra em torvelinho, vejo o Kraken, formidável polvo gigante. Leio também a respeito do Crocodilo de Madagascar, a incluir ipsis literis o relato de bordo de um navegante que diz ter-lhe avistado de longe, razão pela qual não sofreu a abordagem de sua poderosa cauda, determinante de incontáveis naufrágios.
Híbridas ou não, terrestres ou marítimas, deste mundo ou de outros, as bestas anotadas por Sotero são espetacularmente fantásticas. Em se tratando dos dragões, por exemplo, seus prediletos seres, há dezenas deles sonetografados, acompanhados de gravuras fascinantes a retratá-los em seus mais diferentes e incríveis detalhes. O Bestiário Alquímico de Sotero é resultado de décadas de dedicada composição, de anos e anos de incursões pelos mais estranhos mundos que Sotero já se atreveu a visitar. Ora a servir-se da Mandrágora, pura ou misturada ao Helleborus niger, ora a valer-se da uachuma, Christiano penetra reinos interditos… migra da Grécia antiga às cordilheiras dos Andes, sobrevoa os férteis vales e planícies do Egito, visita as oníricas ilhas dos mares mais distantes, mirando maravilhas bem além dos espelhorizontes que nossos olhos jamais viram.
Escolho aqui, senão a mais terrível, talvez a mais sensível peça de seu Bestiário a fim de introduzir nosso leitor a este extraordinário universo: Raposáguia, soneto em decassílabos heroicos em que o mestre nos conta de como sofreu, certa feita, uma de suas mais profundas transformações, tomado estava pelo poder da raposa, um dos animais que muito o inspira. No soneto, assim se nota, é ela, a raposa, que primeiramente se transmuta em lobo para então, na pele (e nos olhos) deste, visitar-se em suas cavernas mais profundas, de onde, ao retornar à mata de onde viera, já sofreu nova metamorfose, pelo que se alça, transformado agora o lobo em águia, em voo libertário a abraçar os céus de uma Nova Consciência. Confira:
RAPOSÁGUIA
Fez-se Loba a Raposa, um ser noturno,
e adentrou na caverna aos passos lentos
e espreitando em seus modos mais cinzentos
chegou ao seu profundo andar soturno.
Atravessou a noite em seus tormentos,
exorcizou falanges por seu turno
e em busca de seu par de asas diurno,
chorou ao pé da rocha os seus lamentos.
Transmutou assim chumbestanho em prata
e o couro transformou em penas francas;
das patas, duas garras, duas asas
E alçou-se da caverna além da mata;
Raposa em seus mistérios voa em brasas,
Rainha em liberdade de Águias Brancas!
C+S.:.
N.N.D.N.N
N.D. (nota do discípulo): o avermelhado da pele das raposas, o cinzento do lobo aqui descrito, bem como a candura da águia, alegoricamente nos reportam às três grandes fases em que se desdobra todo o processo alquímico, respectivamente implícitas nas entrelinhas deste sonetalquímico: rubedo, nigredo e albedo.