CREPÚSCULO e AURORA
Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 365, fevereiro/2003
Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
Comecemos por uma tarefa aparentemente muito simples: peço ao leitor que aponte com rigor absoluto o instante em que rompe a aurora no horizonte, anunciadora da presença iminente do astro-rei. Feito isso, que indique o exato momento em que o crepúsculo se instala na paisagem, preparando nosso espírito para a chegada da noite que se avizinha. Quem dentre nós já viu cair esse grão de areia da ampulheta cósmica que determina a guinada do dia, que faz descer sobre nós completamente o manto da noite? Qual mortal já foi igualmente testemunha do titular microssegundo em que a noite se transmuta, em que as trevas viram luz?
Eternamente jovem, em todas as civilizações, a aurora é símbolo do alegre despertar, do renascimento na luz reencontrada. Já o crepúsculo, invariavelmente associado ao Ocidente, abre as portas rubro-negras do misterioso mundo no qual o Sol descamba peremptoriamente além da linha do horizonte. Aurora e crepúsculo são arautos do novo tempo, de uma nova condição, e anunciam-se reciprocamente, ainda que entre eles se intercalem noite e dia, visto que a morte de um é condição necessária para o advento do outro. A ocorrência desses estados singulares construídos por matizes mutantes, por lusco-fuscos especiais indefinidos, inspiradores de tanta arte e poesia, demarca com beleza indescritível o caráter cíclico da vida que noturna e diariamente se renova, manifestando-se misteriosamente sempre bela.
Eos, a Aurora, é irmã de Hélios, o Sol, e de Selene, a Lua; deuses gregos que compõem a tríade fundamental das divindades celestiais. Etimologicamente, o nome grego Eós está preso à raiz aues, que significa “brilhar”. Homero descreve Aurora como a deusa de róseos dedos, aquela que abre o portal da madrugada pelo qual irá passar o Sol em magnânima carruagem. Aurora acha-se personificada entre todos os povos indo-europeus; em sânscrito o termo que a designa é usas, de onde se originou o dórico auós, do qual o latim extraiu aur-ôra, mesma fonte de onde os germânicos leram Ost e os saxôes east, ao batizarem o ponto leste.
Além de descerrar as pálpebras do dia, Aurora é deusa refrescante, portadora das brisas matinais, também aquela que esparge o orvalho pelos campos e que acorda as criaturas dando ao mundo as primeiras luzes que guiarão os trabalhos humanos. Aurora surge numa biga cor púrpura, puxada por dois resplandecentes cavalos guiados por rédeas multicoloridas: Lampo e Faetonte. Seus nomes respectivamente significam “aquele que brilha” e “aquele que reluz”. Aurora é filha de do titã Hipérion, que em grego quer dizer “aquele que se move nas alturas”, e de Téia, a mais velha das titânias, entidade matriarcal cujo nome, correlato de téos, significa “a divina”. A poesia clássica descreve Aurora como mulher encantadora, de cabelos soltos e esvoaçantes, ora com asas nos ombros ou nos tornozelos, que lhe conferem leveza e agilidade, e capaz de causar a admiração dos que a vêem romper envolta em brumas luminescentes. Por seu caráter caprichoso e determinação efêmera, Aurora sempre se apaixona de modo intenso, mas volúvel. De um de seus casamentos, com Astreu, o céu estrelado, tem como filhos dois ventos, Zéfiro e Bóreas, e dois astros, Noto e Heósforo.
Ainda que de beleza inefável, Aurora dá passagem a seu irmão Hélios, que a segue num carro de muito maior brilho, todo feito de ouro. A carruagem, forjada pelo artífice deus Hefesto, vem puxada por quatro majestosos cavalos brancos dourados que cospem labaredas pelas ventas: Eôo, Flégon, Éton e Pírois, cujos nomes, nessa ordem, traduzem-se por “Oriente”, “Brilho”, “Chama” e “Fogo”.
Análogo à divindade mesopotâmica Samas, Hélios tem por missão iluminar e orientar os homens; é ele também quem faz brotar a flora e dá vida a tudo. Homero registra que “viver é ver a luz do sol”. Todos os dias, em sua regrada existência, Hélios, jovem de excelsa beleza, de cuja cabeleira cor de fogo emanam seus raios, percorre a mesma trajetória. Emerge de um longínquo pântano situado nos extremos do Oceano e sobe impetuosamente até alcançar o zênite. Por enxergar das alturas a humanidade em seus afazeres, conferindo com o mito de Samas, Hélios tem a função de ser juiz do mundo e dos homens; ele é o “olho que tudo vê”, correlato do “olho de Hórus” dos egípcios. Uma vez tendo cumprido a primeira metade de sua aventura celeste, Hélios inclina-se em direção ao poente, buscando atingir em sua descida um ponto situado no extremo oposto do mesmo Oceano do qual surgiu, num lugar chamado de País das Hespérides – o Ocidente (de onde se originou o nome Vésper, a denominar o planeta Vênus, ou astro vespertino). Lá, deus Sol banha seus cavalos fatigados e repousa durante o início da noite num palácio de ouro, até que tome carona numa taça ou num barco (também feitos de ouro), que cumprem infalivelmente levá-lo outra vez à superfície do Oceano, ao pé da porta de entrada do seguinte dia.
O Oceano grego (okeanós), cujo termo dá o sentido de algo “circular e envolvente”, por influência sumeriana, a princípio era imaginado como um rio-serpente que circundava a Terra. Oceano, portanto, é a água que rodeia o mundo; em razão de sua imensidão e de suas potencialidades, simboliza a indeterminação primordial, a fonte sem limites de onde nasce a vida. Igualmente, a mitologia egípcia encara a Terra como um mundo emergente das águas primordiais.
Ao aproximar-se do horizonte, estando o Sol prestes a mergulhar vertiginosamente no Ocidente, descreve-se o segundo incrível cenário do dia, complementar àquele do alvorecer, de nuances igualmente indescritíveis, a inspirar tantos sentimentos, temores e poesia. É chegada a hora do crepúsculo, período suspenso de estranha beleza, com ares de nostalgia obscura, de tez carmim-venosa, prenunciador da escuridão que se abate inexoravelmente sobre cada um de nós. O crepúsculo, visto assim, é um convite à introspecção; ele ocorre para nos dar a chance de avaliar nosso caminho, força-nos a olhar um tanto mais para dentro de nós mesmos, lembrando-nos de que somos sóis ou juízes diários de nossos próprios atos, já que o mundo externo estará dali a pouco dominado pelos seres tenebrosos, quando a vida, paralisada, será entregue a um período de auto-análise e recolhimento.
Nesse sentido, o ocaso sempre esteve associado à idéia da morte. A antiga sociedade egípcia, por exemplo, para a qual a vida nada mais era do que uma cotidiana preparação para a Grande Iniciação, ou viagem da morte, regrava-se completamente tomando por referência o rio Nilo, equivalente geográfico das águas míticas primordiais. À sua margem oriental situavam-se as chamadas Casas da Vida, ou escolas de medicina; do lado ocidental do Nilo, onde o Sol sempre morre, situavam-se as necrópoles. Perto destas, estavam as Casas da Morte, tendas ou construções nas quais os sacerdotes consagrados a Anúbis praticavam a arte da mumificação, esmerando-se em preservar, por meio da conservação indeterminada dos corpos, a eternidade das almas que deles migravam para apresentar-se ao tribunal de Osíris. O Livro dos Mortos egípcio, cujo título melhor se traduziria por “livro da vida”, compunha-se de uma série de hinos e orações destinados a orientar as almas a empreender com sucesso todas as etapas da Grande Viagem, desde que o julgamento póstumo as absolvesse.
Os gregos, por sua vez, destinavam às almas dos mortos uma pós-existência no reino de Hades, mundo subterrâneo onde permaneciam à espera da chance do renascimento. Deus Hermes, passando seu caduceu de ouro enredado por duas serpentes entrelaçadas sobre os olhos dos que morriam, dá a estes seu aspecto vítreo opaco, próprio dos cadáveres. Isto porque uma das serpentes tem função hipnopômpica, (hipnos = sono; pompéim = conduzir em triunfo) ou seja, a de fazer adormecer a alma, para que Hermes possa acompanhá-la até as margens do Estige, e aí entregá-la ao barqueiro Caronte que, recebendo sua moeda, leva o recém-chegado à margem oposta do rio, decretando assim o recolhimento da alma ao mundo de Hades. Hermes, igualmente, recebe de Caronte as almas que se apresentam para renascer, e passando sobre elas seu cajado, a segunda serpente, de função hipnagógica (agós = aquele que conduz, que leva à luz), devolve o brilho aos olhos dos que serão recém-nascidos. A psicopatologia, inclusive diferencia as alucinações quanto a este aspecto; se estas ocorrem quando estamos adormecendo, em momentos que precedem o sono profundo, são ditas alucinações hipnopômpicas; se o fenômeno se dá ao despertar da consciência, ou nos momentos leves de sono, são chamadas de percepções ou alucinações hipnagógicas.
Voltemos então à nossa questão: pode agora o leitor indicar com exatidão o fugaz momento em que o crepúsculo ou a aurora se iniciam, o preciso segundo em que as trevas começam se dissipar, ou ainda aquele em que a noite vira dia? Para resolver o impasse, peçamos ajuda ao símbolo chinês do Tao, que é o de um círculo fechado, metade branco, metade preto, dividido ao meio por uma senóide (traço curvo em forma de “s”) a dar idéia de movimento e interação entre as partes. Em meio à parte clara da figura, há um ponto negro; em sua metade escura, está um ponto branco. Abstrai-se daí que ambas as metades carregam em si aquilo que lhes falta, cuja natureza lhes é oposta e ao mesmo tempo complementar. Os antigos chineses depreendiam desse simples desenho a noção do dia e da noite, que indefinidamente se sucedem de modo a manter sempre viva a perenal dança da vida. Com base nisso, admitiam que o dia, potencialmente, já trouxesse em si a essência da noite, e vice-versa, haja vista como um no outro se transforma sem que possamos de fato precisar o instante em que a transmutação ocorre. A aurora não seria menos este momento do que o crepúsculo, e ambos não servem como bons exemplos da guinada, posto que a transformação está dotada de um dinamismo constante, a preservar o movimento sempiterno. Meio-dia ou meia-noite, pouco importa, também não são momentos estanques, pois trazem em seu âmago a essência de seu mundo contrário, seja de luz ou de trevas, que irá brotar em oportuno tempo. Como diria Blaise Pascal, filófoso do século XVII, Nossa natureza está no movimento, o inteiro repouso é a morte.(Pensamentos, 129).
Nesse aspecto, convém lembrar: inúmeras são as civilizações que fazem do Sol uma divindade principal que a cada dia nasce das águas, viaja sobre a Terra vendo e julgando toda a humanidade, para daí morrer no mar profundo, onde descansará até que renasça o novo ciclo. Dia e noite se sucedem para manter a harmonia de um cosmos paradoxalmente nascido de águas caóticas e abissais. Por conta desse caráter cíclico segundo o qual a natureza se comporta, surgem as concepções reencarnacionistas que creditam à alma uma continuidade após sua existência terrena. Uma vez dissolutas e imersas nas águas da morte, após o crepúsculo da existência terrena, as almas, várias mitologias o atestam, esperam por um possível retorno para um novo “dia” de afazeres e aprendizado, quando nosso barco solar despontará no horizonte leste, anunciado pelos alaridos da aurora.
Crepúsculo e aurora, dia e noite, oriente e ocidente, roda da vida, viagem da morte, mar infinito… Ainda que não compreendamos os mistérios da existência, ainda que não saibamos de onde vimos e para onde vamos, nossos olhos contemplam as maravilhas que nos cercam e nossas almas encantadas ficam com a marcha do Sol, com a travessia da Lua e com as estrelas que nos tocam.
Vejamos como esse fascinante tema é tratado pela pena do poeta português Fernando Pessoa, ele próprio (1888-1935):
“Ó curva do horizonte, quem te passa,
Passa da vista, não de ser ou ‘star.
Não chameis à alma, que da vida esvoaça,
Morta. Dizei: Sumiu-se além no mar.
Ó mar, sê símbolo da vida toda –
Incerto, o mesmo e mais que o nosso ver!
Finda a viagem da morte e a terra à roda,
Voltou a alma e a nau a aparecer.”
(11-jan-1922)
Oh meu pai que trem mais lindo! Como se diz lá no meu cerrado…!!!
Madona Santa, é um tratado, uma matéria maravlhosa, senza parole! Mágica manhã! Gratidão.
Neste texto encontrei a Aurora da Minha Alma…
O que posso fazer agora, senão elogiar a inteligência Divida do Autor que escreveu o texto direcionado para minha Alma Desperta.
Saudações ao Mestre.]