SENSO-ESPIRITUALIDADE DOS SENTIDOS
Texto de Paulo Urban, médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
Um de nossos maiores enganos é crer que o divino se encontre fora de nós, e que exista em mundo alheio de nossa realidade, como algo impossível de ser alcançado, sequer imaginado.
Essa ideia tem raízes no racionalismo de Descartes (1596-1650), que deu bases filosóficas à ciência moderna, propondo ainda que alma e corpo fossem instâncias distintas a fazer do homem um ser duplo, partido em sua dicotomia psicofísica. Descartes entendia que os sentidos nos enganavam e nos iludiam quanto à realidade do mundo, admitindo como verdadeiras apenas as ideias inatas, fruto da razão pura; levando sua dúvida a um grau absoluto, intuiu que embora tudo pudesse ser falso, o fato de que pensava era o que lhe restava de claro e distinto. “Penso; logo, existo”, imortalizou-lhe essa máxima.
Contrapôs-se ao racionalismo francês, o empirismo inglês de Francis Bacon (1561-1626) e John Locke (1632-1704). O termo vem do grego empeiria e significa experiência. Se o pensamento cartesiano, em sua busca por uma verdade absoluta, dava exclusivamente ao sujeito toda a possibilidade do conhecimento, já que tomava a realidade exterior como falsa, o empirismo, por sua vez, questionando o caráter absoluto da verdade, limitava o homem à experiência sensível da realidade comum, que sofre transformações constantes e que, sem ser experimentada, não nos permitiria sequer a reflexão posterior acerca da relatividade da natureza das verdades.
Esse grande dilema ocupou por três séculos a filosofia, até ser superado pela fenomenologia de Husserl (1859-1938). Etimologicamente, fenômeno é “aquilo que rompe, que se percebe”. Segundo Husserl, nem há pura razão ou consciência separada do mundo, como queria Descartes, nem objeto algum que exista sem uma consciência que o perceba. A fenomenologia entende que o papel do sujeito não prevalece sobre o mundo sensível; tampouco a determinação dos objetos sensíveis vale mais do que aquele que os percebe. O que importa é o fenômeno, ao qual nossa consciência procura dar significados.
Para os fenomenologistas, vale dizer, a consciência é intencional, isto é, ela tende para o mundo no intuito de percebê-lo, interagindo com o que se põe diante dela. Propõe-se assim algo novo: não há sequer distinção entre sensação e percepção. Empiristas e racionalistas, guardadas suas diferenças, sempre concordaram que a sensação decorresse da relação de causa e efeito entre estímulos particulares e sua recepção por meio dos órgãos dos sentidos, e que a percepção seria a função capaz de juntar numa só “síntese” a totalidade dos estímulos distintos vindos do mundo exterior, objetivo. A fenomenologia fez nascer a psicologia da Gestalt, cujo nome alemão quer dizer “totalidade, configuração”. Segundo essa teoria o mundo exterior não é mera coleção de coisas isoladas, e a consciência procura vivenciá-lo de forma plena e integrada, transpondo a barreira das sensações elementares, buscando sempre unificar os fenômenos percebidos de modo a conferir-lhes noção de totalidade e significado.
Para começarmos a entender a consciência, entretanto, precisamos inteirar-nos dos órgãos dos sentidos, fabulosos transformadores (do latim transducere, transferir, conduzir) da realidade que nos cerca, veículos perceptivos que interagem entre si e que nos levam a intuir que a mente esteja muito além do cérebro. Nas palavras da escritora estadunidense Diane Ackerman, em sua História Natural dos Sentidos, ed. Bertrand, “a mente percorre o corpo em caravanas de hormônios e enzimas, ocupadas em dar sentido às maravilhas que catalogamos como tato, paladar, olfato, audição e visão”.
Indo além, ouso dizer que a consciência esteja essencialmente presente em cada célula diminuta, em cada um dos tecidos, em cada sistema do organismo, conferindo complexidade ao todo, permitindo, no caso exclusivo da espécie humana, o capricho de refletir acerca da notória brevidade da existência. Reconhecemo-nos como seres sensíveis e mortais, resume-se nisso todo nosso privilégio e nossa dor. Isto expõe cruamente o caráter solitário dos homens; compensa-nos, outrossim, a aspiração pela espiritualidade e pela sabedoria, e nesse aspecto, os sentidos sacralizam a experiência humana, permitindo-nos ultrapassar a realidade comum.
“As portas da percepção são os sentidos, quando se os supera, tudo o que resta é o infinito”, escreveu o poeta inglês William Blake (1757-1827). Entendo os sentidos como verdadeiros poemas da consciência, como vias de interação com o mundo exterior e ao mesmo tempo passagens para a esfera transcendente; Deus parece ter guardado segredos por detrás de suas cinco portas, e o encanto da vida reside em descobri-los sempre novos. De fato, os sentidos permitem resgatar o traço divino inerente mesmo às mais simples experiências sensoriais, como sentir o perfume de uma rosa ou o sabor de uma maçã, o frescor do orvalho na pele, a liberdade de uma vista para o mar ou a paz em ouvir a Sinfonia da Cantata 156 de J. S. Bach. Quando explorados em sua profundidade, os sentidos levam-nos a dimensões inauditas, a percepções sinestésicas (que envolvem vários sentidos concomitantemente), que tangenciam o êxtase, instância onde os sentidos certamente não moram, mas à qual insistem elevar toda alma sedenta de luz e sutilezas.
Ao propor-me a escrever este texto, entretanto, deixei-me cair numa armadilha. Deveria supor ser impossível traduzir em palavras as experiências, simples ou especiais, que os sentidos permitem conhecer. Afinal, como descrever um perfume e explicar as lembranças que ele evoca; como expressar um sabor que nunca será o mesmo sejam quantas forem as bocas que o provem?
Diante dessa dificuldade intransponível, preferi, pois, tratar o tema por meio da poesia, dedicando a cada um dos sentidos um soneto em versos decassílabos heroicos. O leitor que me perdoe a ousadia, mas a prosa jamais nos levaria ao limiar desse templo transensorial que a poesia, por meio de imagens e neologismos, tangencia. Mesmo assim, fique claro, longe de mim a pretensão de traduzir os sentidos, de elucidar seus fenômenos, de explicar sua inefável magia. Comecemos nossa aventura sinestésica pelo tato. “Nada pode ser tão discreto e ao mesmo tempo tão forte quanto um toque”, disse o poeta Walt Whitman (1819-1892).
Sabemos o quanto os recém-nascidos precisam ser tocados e estimulados para que desenvolvam plenamente a inteligência. Nesse aspecto, nada é mais científico que o amor que, por meio do toque afetivo, pode mesmo operar milagres e curar. A linguagem do tato comunica segurança, favorece a autoestima, e pela tríade do beijo, do abraço e do carinho, revelamos qual música está tocando o nosso coração.
TATO
Por toda nossa pele corre o tato
espraiado em corpúsculos sensíveis,
são dermatomontanhas invisíveis
que nos traduzem o mundo sensu lato.
Nossos corpos, texturas imiscíveis,
particulares templos do contato…
por línguas que se beijam faz-se o trato:
carícias nos traduzem em mãos tangíveis.
Que os egos têm textura de veludo,
deitam-se em crespos sonhos de cetim,
pisam alfombras de rosas e marfim,
entregam-se aos prazeres, sobretudo,
massagens… e a não ser que eu me equivoque,
mais sutil, poderoso será o toque!
No reino do paladar tudo é saboroso e intimista; afinal, nunca sentimos um gosto a distância. De todos os sentidos, este é o de caráter mais social; todos os povos e culturas têm suas características culinárias próprias e é à mesa que famílias e sociedades trocam suas experiências cotidianas. Sabemos que não convém fazer refeições ao lado de pessoas que gritam ou costumam vomitar densa energia. Também dificilmente escolhemos comer em solidão. Visitas e viajantes são recebidos sempre com alguma refeição. Comer em grupo é sempre um rito, e muitas culturas apreciam esta ou aquela especiaria, atribuindo-lhes propriedades afrodisíacas ou mesmo sobrenaturais. O alimento, dádiva que a terra nos oferece, nutre corpo e alma e nos permite a generosidade da partilha e o sentido da amizade.
PALADAR
Meu paladar degusta a natureza,
quebra o universo ao banho de saliva,
rompe em vulcão-papila gustativa,
lava em prazer a química da mesa.
Insaciedade tálamo-instintiva
descobre nas partículas grandeza;
o predador devora e lambe a presa,
sacia-se em cadeia digestiva.
Mordo em êxtase a casca da cantárida,
derreto o chocolate afrodisíaco,
exploro especiarias de outro mundo…
Um prato sem tempero é floresta árida,
um copo com buquê é dionisíaco,
que o ágape sensual é o mais profundo!
O olfato é sentido que acende na alma desde nossa primeira inspiração. Cheiramos por toda a vida, posto que respiramos. Olfato e paladar estão relacionados intimamente, de modo que mal sentimos os sabores quando estamos gripados. A função olfativa acha-se ainda atrelada às áreas relacionadas à memória. É possível ressuscitar lembranças antigas, mesmo de nossa tenra infância, ao simples estímulo de determinado odor. Metaforicamente, pelo ar que aspiramos somos inspirados com idéias perfumadas de sabedoria. As línguas arcaicas sempre aproximaram a ideia da respiração ao conceito de espiritualidade; em hebraico, ruah, é tanto vento quanto espírito; para os gregos, pneuma, ar, correlato de ankh, termo egípcio, traduzia o mistério etéreo da vida. A inspiração, assim como os cheiros que nos invadem, é sempre uma visita generosa e imprevista.
OLFATO
De todos meus sentidos trago o olfato
plasmado em multengramas na memória:
odores que resgatam dor ou glória
e entregam-me o passado às mãos, ao tato.
Fragrâncias em meu álbum selo-história
perfumam meu olhar de cada fato,
das pétalas e bétulas resgato
a volátil partícula hiperbórea.
Sentidos vaporizam sentimentos,
aspiram natureza almiscarada,
absorvem acres sonhos putrefeitos.
O olfato é cego e surdo, mas perfeito;
não fala, mesmo assim tem seus momentos,
respira um sol de vida em cada estrada.
O primeiro som que todos nós ouvimos é o batimento cardíaco de nossa mãe, enquanto crescemos em seu útero. Por isso guardamos uma natural simpatia pelos toques ritmados dos tambores xamânicos. Também a poesia expressa-se por ritmo e musicalidade e os versos procuram consonância. Ouvimos barulhos e ruídos dentro de determinada freqüência, mas preferimos a música e os sons harmônicos que nos provocam emoções muitas vezes indescritíveis. Para o sábio Pitágoras, o universo inteiro é número e música! Tudo o que é vivo tem movimento. A rigor, o papel que o leitor ora tem nas mãos agrega moléculas em completa revolução, que vibram e emitem música própria. Também nossa intuição pode expressar-se como uma voz interior, a nos soprar a boa palavra e o melhor caminho a serem escolhidos. Escutar o silêncio é perceber a fala interior, e a meditação nos leva à comunhão cósmica, visto que descerra a cortina da sinfonia das esferas.
AUDIÇÃO
Percorro labirintos transilentes,
desvelo os sons recônditos do Tao;
planetas dançam em órbitas cristal
reverberando orquestras inconscientes.
São cordas, são madeira, são metal,
polifonia atômica e eloquente,
céu, terra e mar percutem tom dormente,
na Pedra vibra o Verbo perenal.
Sereias e golfinhos cantam plenos,
morcegos louvam a deus em ultrassom;
meu coração, metrônomo dos passos,
projeta-me ao abismo dos espaços,
remete-me aos acordes arqui-extremos,
ao pulso universal dos mantras: Om.
As cores que vemos, os físicos demonstram, são sempre aquelas que estão sendo refletidas pelos objetos, nunca a que eles têm, e seus matizes são percebidos segundo refrações particulares; o meu vermelho, por exemplo, é diferente do vermelho de cada leitor; já químicos especializados em corantes são treinados a perceber mais de 300 cores no mesmo universo onde comumente distinguimos cerca de 150. Cores à parte, nosso olhar revela-nos transparente; através dele tanto buscamos quanto expressamos nossa verdade. As almas se reconhecem nesse ato recíproco especular. Ademais, olhamos as estrelas à noite e, vislumbrando a imensidão do cosmos, somos inequivocamente convidados a olhar para dentro de nós mesmos.
VISÃO
Meu olhar noutros olhos se conhece
quando em pupilas busca a selfimagem,
definindo o horizonte da miragem
do Sol que em ti me acorda ou me anoitece.
Que os olhos de minh’alma são passagem,
lacrimejam à dor que me enobrece,
transmutam sais de dúvidas em prece,
discernem flor do amor dentre a folhagem.
Vislumbro além dos olhos, alucino,
penetro além das trevas estelares
e em cores vejo um Cosmos transparente.
Mensagens telescópicas de olhares
desnudam em paranoia minha mente:
sou o Olho do Universo que imagino!
Podemos ainda ampliar a percepção por meio de práticas meditativas e respiratórias, ou pela ingestão de substâncias psico-ativas, visando alcançar estados alterados de consciência. Multiplicar as funções sensoriais é provar a fundo as fascinantes sinestesias que nos levam a reinos inauditos e desconhecidos. De fato, a divindade não está longe de nós, ela se encontra essencialmente presente em nossa sagrada existência cotidiana, na permeabilidade recíproca entre corpo e alma; e ela se permite ser tocada, aspirada, ouvida, reconhecida e experimentada no limiar da sensorialidade, no mágico portal da espiritualidade transcendente.
Olha só a sincronicidade, recentemente em um estudo que estou fazendo li sobre alguns tópicos que foram abordados logo no começo do texto, e essa leitura colaborou para eu ampliar e compreender mais a abordagem do assunto.
E algo q tem me chamado a atenção é a presença de elementos relacionados a alemanhã e muito do que venho pesquisado, mesmo quando isso não está no foco do estudo.
Também achei bem interessante essa informação sobre o som do batimento cardíaco e o tambor… bem legal!
Gratidão pelo texto!