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Carlos Prado, Médico da Terra e dos Homens

CARLOS PRADO, MÉDICO DA TERRA E DOS HOMENS

CARLOS PRADO É UM JAMPIRI, NOME QUECHUA-AYMARA A DESIGNAR “AQUELE QUE CURA”. VERDADE: SEU CORAÇÃO ESTÁ DISPOSTO A CURAR TANTO OS HOMENS QUANTO O PLANETA.

Entrevista publicada na Revista Nova Consciência, edição # 2, novembro/2007, da qual Paulo Urban* foi editor-chefe. Assinam esta entrevista: Paulo Urban, Jorge H. R. Rosales e Leia Tavares.

Fotos de Andréa Camargo: andreacamargo.fotografa@gmail.com

*Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento

Há quase dois séculos, a Medicina Tradicional Chinesa, cujas bases estão centradas no taoismo, timidamente entrava pelas portas da França, em nosso mundo ocidental. Hoje ela se encontra amplamente difundida em nosso meio. Mais recentemente, outra medicina ancestral, a Medicina Ayurvédica, cujos princípios seguem a visão cosmogônica do hinduísmo é que vem cada vez mais se aproximando de nosso cotidiano.

Mas que fenômeno é este, que nos leva a dar tanta importância às medicinas tradicionais orientais (verdadeiramente válidas, é claro), enquanto nos esquecemos da existência de uma Medicina Tradicional Andina, igualmente profunda e sábia, geográfica e etnicamente muito mais próxima de nossa realidade americana?

Tanto quanto estas duas famosas medicinas tradicionais orientais citadas, a Medicina Andina tem sua prática diagnóstica e terapêutica centrada em sua milenar cosmogonia. Lamentavelmente, por serem os quechua eminentemente um povo oral, nunca foi escrito um livro sagrado que guardasse as bases de sua medicina, como puderam fazer as culturas taoista e hinduísta. Por outro lado, a medicina andina segue viva, visto que, diferentemente dos indígenas brasileiros, hoje quase por completo dizimados, os povos indígenas americanos autóctones ainda compõem a maior parcela da população andina.

Carlos Prado Mendoza é um dos mais reconhecidos médicos dos Andes. Seu trabalho tem repercutido internacionalmente e sua missão inclui ainda a conscientização global ecológica e a educação das crianças de seu povo, centrada na preservação da língua e dos costumes do povo quechua. Carlos professa uma medicina cujos princípios nucleares, curiosamente, são os mesmos dos encontrados em outras milenares medicinas:

1) a saúde nada mais é que um estado de harmonia entre o homem e a terra que habitamos.

2) a medicina andina entende que tanto os seres animados quanto a matéria inanimada são essencialmente dotados de um mesmo espírito; todas as coisas são vivas, manifestação de Ajayu uma única energia primordial – Chi para os chineses; Prana dos hindus.

3) essa energia primordial se expressa sempre por meio de sua dupla polaridade: qoñi (quente) e chiri (frio) – ou yang/yin entre os taoistas.

Acompanhemos, pois, a entrevista que Carlos Prado concedeu à Nova Consciência:

Nova Consciência: Em que consiste, fundamentalmente, a medicina tradicional andina?

Carlos Prado: Medicina andina são conhecimentos tradicionais milenares, praticados basicamente por três grupos étnico-culturais: os Quechua, os Aymara e os Tupi-guarani. Mas não podemos excluir dela a medicina praticada na região amazônica, por isso, melhor diríamos “medicina andino-amazônica”, que compreende mais de trinta grupos étnicos que, apesar da diferença de idioma, mantêm uma relação muito próxima em suas práticas de cura. Existem grupos que não se conhecem, mas realizam rituais muito similares, guardadas os diferentes elementos de cada região, suas respectivas floras locais, etc… a folha de coca, por exemplo, utilizada tanto na região amazônica quanto na parte andina, é um elemento de relacionamento entre várias etnias.

N+C: Quais os princípios da medicina andina?

C.P.: Os embasamentos fundamentais da medicina andina estão na sua cosmogonia. Semelhantemente, assim se organizam as outras medicinas ancestrais, a que se praticava no Egito antigo, a medicina taoista, a medicina tibetana etc… todas guardam entre si uma intima relação, que é a de serem todas elas medicinas centradas no entendimento de que a saúde seja a harmonia entre o ser humano e o universo no qual estamos inseridos. Este é o principio básico das artes médicas ancestrais, seu princípio é cósmico e espiritualista. Posso citar três elementos dentro da cosmovisão andina: o primeiro deles é a reciprocidade: Só posso pedir algo à “Pachamama”, se puder ofertar alguma coisa a ela. O segundo princípio nos ensina a respeito dos “opostos complementares”: nada existe sem o seu oposto. Não existe a noite sem o dia; o masculino sem o feminino; o sul sem o norte, nem o leste sem o oeste. Tudo se manifesta sempre entre céu sem a terra, entre em cima e embaixo. O terceiro princípio é o animismo, comum também ao pensamento alquímico: todas as coisas da natureza, todos os seres, animados ou inanimados, têm seu espírito. Na cosmovisão andina, Deus é energia primordial. Por isso dizemos existir uma grande força cósmica, energia que controla tudo, de onde tudo se origina, desde os planetas do sistema solar até uma pequena célula sanguínea de uma pessoa.

N+C: O que o torna um médico tradicional andino?

C.P.: Minha mãe é natural de Cusco (Peru), meu pai de Cochabamba (Bolívia). Assimilei conhecimentos dessas duas culturas, assim como da peregrinação que fiz ao longo de 12 anos, caminhando por todo o mundo andino. Acumulei experiências de todas as regiões por onde passei. Viajei por áreas que compreendem Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Chile. Fiz isso em busca dos saberes médicos locais, em busca de um denominador comum da arte médica andina, incluindo a amazônia peruana e brasileira. Essa é minha formação médica tradicional. Nos últimos anos, tenho ainda viajado sempre a convite por vários países: Brasil, México, estive ainda na África do Sul, na Tanzânia, vou regularmente à Dinamarca, à Suécia, e já estive também na Inglaterra. No Chile conheci os “Mates”, um grupo que pratica um xamanismo tão profundo como em nenhum outro lugar encontrei. Tudo isso me enriqueceu. Temos que recorrer a todos os tipos de conhecimento, mas é preciso estar sempre atento às nossas limitações, mesmo porque não sabemos tudo. A melhor coisa quando não sabemos é dizer: “isso eu não conheço”, e abrir-se para aprendizado.

N+C: Suas experiências pessoais foram importantes para sua formação. Como alguém que não está inserido na cultura andina poderia exercer essa medicina? 

C.P.: Medicinas tradicionais existem em todas as partes do mundo. É patrimônio cultural de cada região. Em relação à medicina quechua, a maneira de assimilá-la é a tradição oral: aprendemos com nossos pais, outros curandeiros, etc… melhor quando há a possibilidade de aprendê-la por meio da relação direta mestre-discípulo, com alguém da comunidade que sabidamente detenha este conhecimento. Mas, mesmo assim, nem todos podem ser médicos nativos, é preciso haver por parte do candidato aquilo que eu chamo de adequação. A decisão de ser médico andino é antes de tudo uma vocação, há que se perguntar interiormente se ela existe. Não se pode simplesmente começar a ser médico e parar no meio do processo.

N+C: Pode-se considerar que a medicina tradicional andina tem a mesma profundidade das medicinas orientais?

C.P.: Sem dúvida, mas outras medicinas, como a ayurveda e a taoista, por exemplo, têm seus textos e livros médicos sagrados, algo que a cultura quetchua, cuja tradição é eminentemente oral, nunca produziu. Isto dificulta enormemente a preservação de nossos milenares princípios, ainda que a prática da medicina andina seja ampla, encontrada por quase todo o Continente americano, lamentavelmente, não existem escrituras. Devido à chacina da colonização espanhola, o preconceito cristão e os fenômenos de interferência do mundo moderno, nossa medicina corre o risco de desaparecer. Cada velho que morre, é velho que leva ao túmulo seus conhecimentos. Muito já se perdeu nos últimos 500 anos. Os gregos, os chineses, os árabes, muitas outras culturas milenares têm seus registros. O papiro egípcio de Erbs, datado de 1.600 a. C., por exemplo, é um dos mais antigos documentos médicos a evidenciar uma medicina cosmogônica. Já o “Livro do Imperador Amarelo” dos chineses, talvez deva ser, dentre todas as medicinas cosmogônicas, possivelmente a mais bem sistematizada.

N+C: E o que, por exemplo, já se perdeu desse conhecimento médico andino milenar?

C.P.: Uma maneira de demonstrar a grandeza de nossa medicina é observar que em passado remoto, em época pré-incaica, já detínhamos o conhecimento técnico das trepanações (cirurgias cranianas). Achados arqueológicos comprovam histórias de guerreiros ou enfermos com tumores cerebrais tiveram seus crânios abertos e operados com instrumental cirúrgico de todo eficiente, hoje desconhecido por nós. A antropologia médica demonstra ainda, devido à análise da calcificação óssea, que muitos desses pacientes sobreviveram anos a fio depois da intervenção. Essas técnicas cirúrgicas estão infelizmente perdidas. A medicina acadêmica, segundo seus atuais critérios, nem as aprovaria. Muito de nosso saber indígena realmente se perdeu. Com as invasões, migrações, interferências estrangeiras, dominações culturais, com o surgimento da chamada medicina científica atrelado a interesses econômicos, cada vez mais fortemente tentam sufocar nossa liberdade de aplicar com plenitude a medicina andina; ora, se já existe enorme preconceito quanto às nossas práticas herbárias e ritualísticas, o que não ocorreria se tentássemos ressuscitar as antigas práticas cirúrgicas?

N+C: Existe relação dos arquétipos da mitologia andina com a mitologia clássica?

C.P.: Isso é muito curioso! Os gregos falam de um universo tripartite; de mesmo modo se estrutura o universo andino. Janaj-pacha é o mundo “de cima”, é o Cosmo estrelado, é a Lua, é o Sol; Kai-pacha é o mundo em que vivemos, onde moramos e trabalhamos a agricultura; Uku-pacha é o mundo “de baixo”, é o mundo subterrâneo e profundo. É o reino de Supay. A Igreja quis ver nele o demônio, assim com também tentou associar a figura do diabo ao Hades grego. Mas Supay em tudo difere do diabo católico, que foi inventado pelo Cristianismo Ocidental. Há uma diferença tremenda entre esses dois conceitos, quando a Igreja associa o diabo a Supay, equivale a nos ver a todos que praticamos a medicina andina como se fôssemos meros feiticeiros”.

N+C: E como a medicina andina é recebida em seu país? Há algum tipo de preconceito em relação a essa prática?

C.P.: A Igreja Católica não nos persegue mais. Num primeiro momento, e por alguns séculos desde a invasão de Francisco Pizarro, houve um confronto muito forte; por conta da Santa Inquisição, muitos morreram. Entretanto, hoje temos um enfrentamento direto com as religiões evangélicas que estão se popularizando nas comunidades andinas, em várias regiões. Utilizando o mesmo discurso da Igreja de 200 anos atrás, dizem que nossas práticas são demoníacas, que o que fazemos é bruxaria, é feitiçaria. É um ataque direto à prática de nossa cultura.

N+C: A medicina andina prima pelos tratamentos naturais. O que você acha dos medicamentos alopáticos?

Carlos Prado, entre mim e Léo Artese, na noite de lançamento da Revista Nova Consciência, SESC Pompeia, setembro/2007.

C.P.: A industrialização da medicina é um dos problemas mais graves para a sociedade do século XXI. Antigamente existia o médico boticário, que conhecia individualmente seus pacientes e tanto diagnosticava quanto sabia preparar seus remédios, feitos à base de ervas ou extratos minerais. Essa é a melhor maneira de curar, e é assim que eu procedo, numa relação clínica pessoal e especificando a receita necessária a cada caso. A medicina alopática propõe o contrário, fabrica um medicamento e quer que ele se aplique a todos os indivíduos que se incluam no raio das doenças para as quais eles se dizem prestar. Hoje, o mesmo medicamento é industrialmente produzido para ser aplicado em milhares de indivíduos, quando, na verdade, sabemos que as pessoas têm suas idiossincrasias, e apresentam condições fisiológicas sempre diferentes. No entanto, as indústrias farmacêuticas continuam enriquecendo ensinando aos médicos como é que estes devem pensar e diagnosticar.

N+C: Qual a importância do manuseio das plantas na prática da medicina andina?

Carlos Prado com os queridos Léo Artese (centro) e Sthan Xanniã, igualmente grandes-chefes xamãs.

C.P.: As culturas andinas trabalham a complexidade das plantas com muito critério e cuidado, pois existem quatro fatores fundamentais que, certamente, irão influenciar no princípio ativo [do medicamento]: se lua está cheia ou não; a hora da colheita, de manhã ou à tarde; a temperatura, se está frio ou quente; e, sobretudo, o modo como deverá ser aplicada a receita, se sob a forma de chá, emplastro, pó etc… Outro grande valor das culturas milenares:é o respeito que estas mantêm pela natureza; caminhamos lado a lado com ela, aliás, como já propunha Hipócrates. Mas o homem moderno quer superar a natureza e busca por resultados imediatos, assume práticas consumistas na saúde, sem compreender a importância de uma relação verdadeiramente mais simples e entre ele e a natureza, capaz de lhe curar ou prevenir doenças.

N+C: Como que uma pessoa prisioneira dos hábitos da vida moderna pode ter acesso à cultura tradicional?

C.P.: Hoje existem os chamados xamãs urbanos, surgidos da necessidade da cultura moderna resgatar e trazer para perto de si os essenciais valores da vida, cada vez mais perdidos na correria das cidades, na ciranda do dinheiro. As comunidades urbanas procuram suas alternativas: hoje encontramos o xamanismo urbano praticado em quase todos os países europeus, assim como acontece nas cidades dos países Andinos ou do Brasil. Claro que há muito despreparo dos que transitam nesse meio, mas existem também xamãs ou curandeiros urbanos que realizam trabalhos de cura com muita propriedade. Qualquer prática da medicina que funcione, independentemente de sua origem, costuma fazer bem quando respeita as leis da natureza. O importante é restabelecer um saudável contato entre as sociedades urbanas e a Pachamama, em nome de uma cura tanto dos homens quanto do Planeta.

N+C: E como podemos recuperar esta nossa integração com a natureza, vivendo nas grandes cidades?

Ritual de cura e devoção à Pachamamma na noite de lançamento da Revista Nova Consciência

C.P.: O planeta Terra ainda não está saturado, tampouco as megalópoles como São Paulo, Tókio, Nova Iorque, Cidade do México, são o que prepondera. Ainda há chances de preservar as áreas florestais e garantir a sobrevivência das gerações futuras. A China, por exemplo, já está construindo uma cidade ecologicamente adequada, já estão surgindo novos conceitos arquitetônicos que integram a modernidade com a questão ecológica. É muito importante entender que atitude ecológica é independente de ladrilho e cimento. Conheço Brasília, por exemplo, que é saneada, arborizada, e fruto de um novo conceito de urbanização. Estamos preparados para criar outras Brasílias corretamente integradas. É preciso resgatar valores ligados à essência da natureza. Isto não é nada mais que aplicar em todas as áreas a Nova Consciência.

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Leia mais sobre este notável xamã em nosso texto “Carlos Prado, Médico dos Andes”.

2 Comments

  1. Telma disse:

    fantástico! parabéns!

  2. Vanda Maria Meireles Matiazi disse:

    É honra e muita alegria ser amiga de nosso Mestre amigo Carlos Prado ; este nosso irmão Maior é um Ser único ; seu coração de amor incondicional pra com todos , é admirável !
    Gratidão Carlos por tua amizade , por querer o Bem comum para todos os seres e para querer manter a Pachamama sempre feliz ! Namaste irmão de luz ! Paz e luz !
    Vanda Maria

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